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“No bico do pica-pau ou no bico rufa o tambor, viemos cantar alvorada na porta de meu amor”

(Cantiga de Os Quentes da Madrugada entoada durante a Festividade de Carimbó de São Benedito em Santarém Novo – Pará).

Existem experiências que por melhor narradora que eu possa ser, não conseguiria expressar, apenas vivendo para entender, momentos em que cultura e comunidade, entrelaçadas pela fé, criam vivências únicas. Assim é a Festividade de São Benedito em Santarém Novo, um patrimônio bicentenário de devoção e celebração que pulsa no ritmo do carimbó. Ao retornar de lá, trago sempre no coração memórias de alegria, emoção e profunda gratidão.

Por Priscila Cobra/Edição: Kelvyn Gomes/ Imagem: Priscila Cobra

O ritual começa antes mesmo dos tambores ecoarem no barracão: o levantamento do Mastro, as ladainhas e as alvoradas, entre 5h e 7h da manhã, marcando a trajetória dos festeiros. Durante 11 noites, o barracão de São Benedito vibra com o som dos tambores e dos passos ritmados, em respeito absoluto à tradição — das vestes às músicas ancestrais que ressoam de geração em geração.

Mas é na última noite, coincidente com a virada do ano, que a magia transcende. Depois das 5h, quando a Irmandade e Os Quentes da Madrugada liberam o salão, o barracão se transforma em um espaço de pura liberdade. Homens e mulheres, jovens e idosos, dançam como estão, sem acessórios ou distrações, apenas o corpo suado e o coração entregue. Sob o som dos tambores, recos, maracás e triângulos, o novo ano é saudado com pés arrastando no chão, vozes que ressoam e sorrisos iluminados pela luz do primeiro dia.

Essa vivência não é apenas uma festa; é uma celebração da ancestralidade e da força coletiva. Cada mestre — Ticó, Candinho, Sabá, Meu avô — e cada tocador, dançarino e devoto dedica sua energia para manter viva uma tradição que atravessa o tempo. A cultura popular amazônica pulsa ali, na força de Os Quentes da Madrugada, da Nova Geração, do Trinca Ferro Mirim e de tantos outros que garantem a continuidade desse legado sagrado.

Minha alma foi lavada no barracão. A poesia dos tambores, a simplicidade das vivências e o afeto caloroso da comunidade me renovam de uma forma indescritível. Cada detalhe, desde o preparo da gengibirra até o esforço para manter o ritmo de 11 dias quase sem descanso, revelam a grandiosidade desse patrimônio.  

Estar ali para sentir cada momento único é um privilégio, e já o senti algumas vezes, inclusive em 2023 quando atravessei para 2024 e pude me tornar festeira deste dezembro que receberá 2025.

De subir ao palco, de cantar carimbó ao lado de tocadores e tocadoras de Santarém Novo, Bragança, Capanema e Belém. Uma honra que jamais esquecerei. Ali, mais do que música, somos parte de um movimento ancestral que nos conecta às raízes afro indígenas e à espiritualidade de São Benedito, o santo preto protetor do povo e padroeiro do carimbó. 

A todos que tornam possível essa magia — a Irmandade, liderada com dedicação e amor, e cada morador que contribui com esforço e alegria — minhas saudações!

Viver essa experiência renova, com admiração e respeito, minhas próprias tradições que, espero, assim como a Festividade de Santarém Novo, resiste e se reinventa a cada ano. 

Viva o Carimbó!  

Viva São Benedito!  

Viva a Cultura Popular Amazônica de raiz

Multiartista, carimbozeira e periférica. Moradora do Parque Guajará – Icoaraci (Belém-PA) há 30 anos.Jornalista e Mestra pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, com ênfase em Sociologia (Universidade Federal do Pará). Ribeirinha do asfalto, auto declarada afroindígena, por ancestralidade entre o asfalto da selva de pedra e o rio de água doce de Cametá, baixo Tocantins, por ser filha de uma cametaense (Pará) e um manauara (Amazonas).

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