De Kelvyn Gomes | Foto: Elza Lima
Com mais de 40 anos de carreira, a fotografia entrou na vida da paraense Elza Lima como uma forma de registrar a infância das filhas. Hoje, com um acervo que ela sequer consegue mensurar, a artista já visitou todos os 144 municípios paraenses, expôs no Brasil e no mundo e foi homenageada em uma Bienal de Artes.
A grandiosidade do trabalho da fotógrafa paraense Elza Lima está na simplicidade e delicadeza do seu olhar sobre as coisas. Elza me recebeu no meio de uma tarde ensolarada de julho, em sua casa, entre uma reunião e outra de seus tantos projetos em curso. Conversar com a artista foi me encantar pela gentileza de suas palavras, ainda que estivesse indignada com a violência sofrida pela floresta, o ambiente que, ao meu ver, mais lhe cativou durante a vida. Uma conversa suave, em ritmo e fluxos lentos e contínuos. Conhecer o íntimo da história de uma profissional tão conceituada foi repensar velhas práticas e o lugar de cada coisa nesta vasta imensidão do universo.
Na conversa de quase meia hora, Elza me contou como começou a fotografar. Uma surpresa, confesso. O que deixou a história ainda mais encantadora. Ao contrário do que talvez possamos imaginar, Elza começou na fotografia como uma maneira de registrar a infância das filhas, uma etapa da vida que ela acredita ser apagada da memória. “Eu comecei nos anos 80, as minhas filhas eram pequenas e eu tinha uma vontade de registrar esse momento delas, que é um momento que é meio apagado da nossa memória. Então eu comecei a fazer uma oficina que foi mais básica, de mexer na máquina, na Galeria 1, que era do Osmar Pinheiro, e depois encontrei a minha família na FotoAtiva”.
A chegada de Elza à Associação FotoAtiva possibilitou o contato com um projeto que vinha sendo desenvolvido pela prefeitura de Belém à época, cujo objetivo era levantar e registrar documentação e o patrimônio histórico do bairro da Cidade Velha. Em seguida, a convite do professor e poeta paraense, João de Jesus Paes Loureiro, a fotógrafa entra para o quadro de servidores da Secretaria de Cultura do Estado e passa a visitar o interior do Pará.
As constantes viagens de Elza a trabalho reviveram memórias de infância, de momentos em que ela desfrutava da companhia dos avós. “O retorno a esse espaço, fez com que eu me levasse às memórias dessa infância e que eram muito dúbias. Eu não sabia se eu tinha vivido aquilo, ou se era minha imaginação”. O entrelace entre memórias atuais e antigas, reais e irreais, permitiu com que a artista tivesse um começo na fotografia que ela considera “mais livre”, sem tema ou conceito que norteasse o fazer fotográfico. Assim, Elza lançou seu primeiro olhar sobre a Amazônia.
Mas suas andanças pelo território lhe permitiram observar mais do que a paisagem. A história da Amazônia, suas populações, hábitos e modos de vida chamaram atenção dela, que também é formada em história pela Universidade Federal do Pará. Seus primeiros projetos, então, recuperaram roteiros de viagens de naturalistas viajantes que circularam por esse território séculos antes de Elza. Ela encontrou com os quilombolas do trombeta, seu primeiro projeto fotográfico; refez os passos da cartógrafa Otili Coudreau e seus registros ao Cuminá (rio afluente da margem esquerda do Rio Trombetas); revisitou o percurso até o lugar onde Francisco Olherana e Gaspar de Carvajal teriam encontrado as Amazonas.
O mundo de Elza, ou aquele que ela reproduz em suas fotografias é um mundo real e imaginado. Sua sensibilidade aguçada e sua forte ligação com a natureza a levam a entender que nossas memórias são resultado de uma mistura entre o real e o imaginado e que sem a imaginação viveríamos presos à realidade. Seu modo de ver e ler o mundo permite enxergar como longe, como Apoena, ver além do óbvio ou daquilo que fomos ensinados a enxergar. A Amazônia que Elza experimentou pela primeira vez nos anos 1980 e 1990 é uma Amazônia dos mestres dos saberes populares, daqueles que aprendem com a natureza e não apenas sobre ela.
Longe dos centros urbanos o contato direto com populações tradicionais, ribeirinhas e povos originários a despertou para outras vivências de mundo. Ser não é ter e em cada lugar que ela chegou, levou consigo um pouco de cada pessoa que encontrou. Ela lembrou de uma entrevista que fez em São Caetano de Odivelas onde teve a oportunidade de conhecer um dos fundadores do Boi Tinga, um senhor de idade, quase no fim da vida. Antes de continuar, Elza encheu os pulmões de ar e olhando para um ponto fixo à sua frente quase como se estivesse naquele mesmo lugar do passado. Então, levantou a cabeça, olhou de novo para mim e continuou.
“Do lado da rede dele, ele deitado, só tinha um sapato pendurado na parede e um baú. Era aquilo que ele amealhou a vida inteira. Eu fiquei muito chocada: como uma pessoa pode passar a vida inteira sendo pescador, é isso que ela leva? Mas quando eu saí de lá, depois de conversar com ele, eu digo: esse viveu, esse não se atrelou aos bens, aos consumos, ele viveu a vida intensamente. Então a vida é o que a gente carrega e não os bens que a gente amealha”.
Com mais de 40 anos de trabalho, Elza já visitou todos os municípios paraenses, tendo voltado, inclusive mais de uma vez, em muitos deles. Longe de se aposentar, ela tem acompanhado as mudanças pelas quais esse vasto território e suas populações têm experienciado. Ela destaca dois eventos chave desse processo. Um deles, o mais doloroso, o avanço do gado e a destruição da floresta. O outro, a chegada da tecnologia à Amazônia.
Seu retorno mais recente a Santarém foi chocante. Grandes áreas desmatadas às margens de rios para dar a lugar a construção de condomínios. A efervescência dos debates sobre o clima e o meio ambiente têm levado as pessoas a procurarem cada vez mais o contato com a natureza. O que muitos de nós não tem percebido é que a maneira como fazemos isso reproduzem práticas predatórias sobre o ambiente. A chegada da civilização e da tecnologia nos moldes que conhecemos, está matando a floresta.
Sentada em um banco de madeira, sobre um piso antigo, calçada com chinelos de dedo e rodeada de livros, ela defende outro modelo de civilização. “Uma civilização que fosse também dividida entre o saber acadêmico e saber constituído pelos mestres a gente entenderia o mundo de outra forma”. Elza é fascinada pela Amazônia, mas principalmente pelos saberes que a constituem. Aquilo que lhe encanta está registrado no início do seu trabalho quando ela pode ver e viver uma Amazônia “mais inteira”. “As vezes quando eu tava naquele lugarzinho da Amazônia, que as árvores são enormes, a floresta é igual as pinturas dos primeiros viajantes, eu dizia: aqui tá Deus!”.
Suas fotografias são o registro de um tempo que ela compartilhou com o mundo em imagens, como se fossem um pedaço desse espaço e de um tempo que agora fazem parte de suas memórias. Elas são resultado do encontro ao embate que a chama. São sequências ininterruptas até que algo inesperado se mova, aconteça. Esse caminho ininterrupto a levou a reproduzir a Amazônia tantas vezes que ela já nem consegue mensurar quantos fotos já tenha feito ao longo da carreira.
Pronta para mais 40 anos de carreira, entusiasmada, ela conta dos planos para o futuro, entre eles o de refazer a viagem de seu bisavô, Ignácio Moura, em 1896 pelo Rio Tocantins, saindo de Belém até São João do Araguaia. “É um trabalho que tá me movendo, eu já fui aprovada pela Lei Rouanet, agora tô atrás de patrocínio. E eu recebi o convite de uma editora para reeditar o livro do meu bisavô. E eu quero fazer um curta sobre uma história que ele conta no livro dele”.
Antes de terminarmos, fomos brevemente interrompidos por uma ligação importante. Era sobre a expedição tocantina de seu avô e que Elza quer refazer mais de um século depois. Uma nova aventura. Ainda que a floresta tenha sofrido um bocado nas últimas décadas, esperamos que ela traga em suas fotografias a beleza dos pedacinhos de céu onde ela costumava encontrar os deuses da mata.
Pessoal, eu simplesmente amei o texto