Por Kelvyn Gomes/Foto: redes sociais do artista
Nascido e criado no bairro da Cremação, em Belém do Pará, Alan Rosevelt, começou a fazer as primeiras rimas ainda na escola onde também recebeu o apelido que adotou como nome artístico. O perfil Jambu dessa semana conta a história da mente por trás de rimas como “Sou neguinho” e “Muralhas invisíveis”, o rapper paraense Pelé do Manifesto.
Ritmo e Poesia
Conterrâneo de Tony Brasil e Marcos Maderito, precursores de ritmos paraenses como o brega e o eletro melody, Alan fez a ponte da Cremação para o Guamá onde vive hoje. Ele não sabe dizer exatamente como, mas conta que aos sete anos já ouvia Legião Urbana, um dos clássicos do rock nacional, e aos nove se encantou pela literatura.
“Então de 13 pra 14 anos eu amava literatura e amava música de protesto, então eu descobri o rap e descobri que o rap era uma sigla em inglês que significava ritmo e poesia, que eram as duas coisas que eu gostava: fazer poesia, literatura, a poética; e a música, era a música de protesto que o rap trazia. Ouvia rock, mas não sabia fazer rock, então no rap eu acabei me encontrando”, lembrou Pelé.
Daí em diante ele começa a escrever, como hobbie e por paixão, até que um professor leva suas letras para a sala de aula e o retorno positivo dos colegas de classe o faz perceber que ali ele tinha um potencial a ser desbravado. “E deu certo! Mas dar certo pra mim não era fazer show e ficar famoso, era poder me expressar e conseguir que as pessoas entendessem e gostassem daquilo que eu tava fazendo”, conta o artista.
Foto: redes sociais do artista
Até que aos 17 anos ele junta suas letras e poesias e lança oficialmente sua carreira junto a um grupo de rap. Nascia aí o Pelé do Manifesto, nome artístico adotado por ele e como é conhecido pelo público. “Pelé é um apelido de escola, só a minha mãe e a minha esposa me chamam de Alan. Mas eu nem tenho cara de Alan”, explica sorrindo. Eu mesmo que já o conheço de outros projetos não conseguia fixar o nome Alan, mas esse é um rodapé na história do artista.
O lugar da arte nas escolas
O rap é um dos pilares da cultura hip hop. Surgiu nos Estados Unidos na segunda metade do século XX entre as comunidades afro-americanas e desembarcou no Brasil ainda na década de 1980. Naquele mesmo ano a cultura hip hop chegava a Belém a partir de filmes exibidos no centenário cinema Olympia. O movimento chega como uma forma de valorizar e apresentar a cultura negra e periférica como potencialidades a partir de suas letras, estilo e comportamento, mas sofre resistência.
Marginalizado, o estilo musical e a cultura hip hop são excluídas das escolas, orientadas a serem sequer lembradas. Há passos lentos e fruto da mobilização do movimento negro, ela começa a ser discutida, problematizada e inserida no ambiente escolar. Mas as participações pontuais, como em feiras culturais, não era o suficiente. A música, a música de protesto, a cultura urbana, negra e periférica merecia um espaço e seus representantes.
O Pelé lembra que na própria escola dele, nas feiras e em momentos culturais não havia espaço para o rap. Então seu sonho era se tornar artista para poder tocar na própria escola, pros colegas. Ele conta que, infelizmente, isso nunca aconteceu. Mas fez com que buscasse outro caminho. “O que que eu pensei? Falei: cara eu tô na pandemia, tô sem fazer nada, vou arrumar um problema pra minha vida”, contou com bom humor. Ele havia decidido prestar vestibular e foi aprovado no curso de letras da Universidade Federal do Pará em 2020.
Foto: redes sociais do artista
“É algo que eu queria trazer pro meu trabalho, que é justamente esse embasamento acadêmico também, né? De tá dentro das escolas, conseguir fazer um trabalho dentro das escolar a longo prazo. E a gente sabe como é pra uma pessoa preta, o nosso intelecto é questionado sempre, então a gente precisa, infelizmente, ainda, obter alguns papéis pra provar que a gente é inteligente. E o que eu sei do rap eu nunca aprendi e nem vou aprender na academia, né? Eu já trago da rua, já é um aprendizado empírico. Mas a gente precisa de um respaldo e eu queria tá trabalhando o rap nas escolas em um período mais longo”, enfatiza o artista.
“Time is money”
A expressão atribuída a Benjamin Franklin (Remember that time is money, “Lembre-se do que já disse, tempo é dinheiro”, em tradução livre) tem sido discutida como uma máxima do capitalismo que explora o trabalhador em benefício de uma riqueza que não será sua. Com 16 anos de carreira, viver da música na periferia de uma periferia, que é periferia de outra periferia, foi um desafio. Sobretudo a partir de um ritmo que é marginalizado. Isso levou Pelé a quase desistir da carreira. Ele chegou a trabalhar como servente de obras para pagar as contas. Mas o cara tirava rima até batendo massa.
“A gente vive num sistema que obriga o pobre a ter um fim monetário pra tudo que ele faz que é o sistema capitalista. Eu não posso ter hobbie! A vida me obrigou a viver disso; a vida me obrigou a tirar dinheiro do que eu mais amo, porque eu não tenho direito de ter hobbie. Eu tenho que ser um surfista profissional, eu tenho que ser um skatista profissional, eu tenho que ser um artista que faz dinheiro com um estilo musical que era o estilo musical menos difundido na minha cidade quando eu comecei. Quando eu comecei todo mundo mandava eu cantar brega porque rap não dá dinheiro. Ninguém entendia que eu não tava ali por dinheiro, eu tava ali porque aquilo era parte do meu ser. Eu tentei parar por dois anos, porque eu tive que arrumar um emprego, eu trabalhei na construção civil. Aí eu tive que largar porque eu não conseguia ter tempo pra fazer o rap. Eu pegava das sete e meia da manhã às sete da noite, de segunda à sábado. Então não tinha tempo. Só que ali no meio da construção eu acabava rimando. Aí eu falei: cara, não tem como isso acontecer. Aí eu optei por largar o meu trabalho e focar no rap; e meu pai falou pra mim: então agora tu vai ter que ganhar grana com isso”, lembra Pelé.
Foto: redes sociais do artista
A construção civil perdeu um trabalhador, mas a cidade recebeu de volta seu artista. Foi nesse retorno que ele lançou a música “Sou neguinho”, um viral nas redes sociais e seu maior sucesso.
Música de protesto, música como protesto, música para protestar
Estar alheio à realidade não é uma opção e é nela que Pelé do Manifesto mergulha para produzir suas rimas. Sua arte é para chocar, entrar “ de carrão de sena”, um soco na boca do estômago, uma coisa indigesta. Arte não é só o prazer da melodia suave de uma harpa, ou o som dos passarinhos que a flauta tenta imitar. Arte é para protestar, arte é protesto. E qual o lugar da arte na realidade, e da realidade na arte? “Eu me inspiro muito no que eu vivo, no que eu vejo, no que eu observo nas pessoas. Mas também eu me inspiro muito na transformação da realidade que eu quero não só pra mim, mas pras pessoas que se parecem comigo. Então eu me inspiro nesse poder da fala. A palavra tem poder, a palavra é poder”, explica Pelé.
Foto: redes sociais do artista
É com a palavra, rimada que ele conta sua história, representa seus semelhantes. Uma história não mais de dominação, ou de lutas, do povo preto, pobre, vítima de um processo de expropriação de sua humanidade: a colonização. Qual o lugar da negritude e da periferia nessa história? Não mais o de resistência, mas de existência, de valorização de suas raízes, de sua ancestralidade, urbana, ribeirinha, afro-indígena, amazônida. “De um tempo pra cá a população negra passou a entrar na faculdade, passou a se entender, a trazer o conhecimento de dentro pra fora, começou a fazer movimentos dentro da periferia e mostrar arte de fato. A gente fez tanta coisa, a gente incomodou tanto que ficou inviável invisibilizar a gente”, compartilha o rapper.
Um pé na frente, outro atrás
Conversar com Pelé, Pelé do Manifesto e o Alan é ouvir a voz da experiência de um cara que sequer chegou na casa dos 30. É se identificar com alguém que, periférico e racializado como eu, segue em busca de um sonho que direta ou indiretamente impacta na vida de tantos outros como nós. Eu já conhecia o trabalho dele, o tinha entrevistado outras vezes, mas nunca tinha ouvido sobre sua trajetória. Nós gravamos por 23 minutos e oito segundo, em uma sala no Curro Velho, um dos maiores berços das artes em Belém. Mas depois que a câmera parou, conversamos por mais alguns minutos. Aproveitei para perguntar o que ele diria ao Pelé de 16 anos atrás. A resposta foi assertiva: “tu tá certinho, continua que é isso!”.