Por Kelvyn Gomes/Foto: Raul de Lima/Reprodução rede social
Com a infância dividida entre o bairro do Jurunas, periferia de Belém, e a cidade de Bujaru, no interior do estado, Joyce Cursino tem orgulho de dizer que cresceu com os pés na terra e no asfalto. Hoje, impulsionada pela comunicação, atua como atriz e produtora audiovisual em projetos voltados à discussão de temas e questões sociais das periferias e povos tradicionais.
Das periferias amazônicas
De origens ribeirinhas e quilombolas, a jornalista e produtora Joyce Cursino se orgulha de dizer que vem das periferias amazônicas. Ela cresceu no bairro do Jurunas, em Belém, mas sua infância foi dividida entre a Amazônia urbana e a rural. “Minha família vem do interior de Bujaru, que é do interior do Pará. Por parte de pai também da ilha do Maracujá. Então eu tenho essa raiz ribeirinha, quilombola muito forte, então a minha infância foi subindo em árvore, com essa relação muito próxima com o rio, com os igarapés, com as frutas, e com o pé no asfalto e na terra, dividindo um pouco a minha jornada entre esses dois cenários assim, uma Amazônia rural e uma Amazônia urbana”, contou Joyce ao som de boas gargalhadas ao lembrar das aventuras da infância.
Nossa conversa foi à beira da Baía do Guajará, no Curro Velho, em um fim de tarde que havia começado ensolarado, mas logo ficou nublado. Joyce acabava de sair de uma apresentação sobre um dos inúmeros projetos em que está envolvida. Bastante à vontade, ela permaneceu descalça durante toda nossa conversa, um hábito que conserva desde a infância, uma forma de se conectar com a terra, o solo, o lugar onde está.
Uma “brincadeira” que ficou séria
Jornalista de formação, ela lembra exatamente como começou. Aluna de escola pública, Joyce conta que participou de um projeto no colégio onde estudava: ela deveria fazer uma reportagem sobre a realidade do bairro. Com o objetivo de formar jovens que conseguissem ser porta-vozes de questões sociais, ambientais e comunitárias, o projeto “ideias que transformam” foi sua porta de entrada na comunicação. Desde então ela não parou. Foi repórter mirim em uma emissora de TV da cidade, entrou para a faculdade de jornalismo, foi estagiária em outra e lá ficou.
Seu primeiro desafio como profissional de jornalismo foi a cobertura da pandemia de Covid-19, frequentando hospitais, acompanhando ações. Mesmo com as dificuldades impostas pelo novo cenário, ela se viu motivada a continuar sua jornada como ativista social. A partir do projeto “Telas da esperança”, ela ajudou na distribuição de cestas básicas com cadernos de desenho em comunidades. “O desafio era elas (as crianças) criarem um super-heroi pra combater o coronavírus e com isso gerar o debate dentro de casa sobre o que era preciso fazer pra se proteger. E aí deu tudo muito certo, esses desenhos viraram uma animação, que foi projetada nas comunidades, nesse intuito de fazer o acesso (a informação) chegar mesmo sem a gente poder sair de casa”, contou a ativista.
O “Telas” cresceu e quando a pandemia se estabilizou ganhou as paredes da galeria Arthur Viana no Centro Cultural Tancredo Neves (Centur) tornando-se a primeira exposição mirim a ocupar o espaço.
Fotos: rede social Joyce Cursino
Um grito de liberdade
A história das populações negras, principalmente na Amazônia, geralmente é reduzida a violência e a passividade, seu lugar na formação cultural do país e da região costuma estar atrelado ao mundo do trabalho e manifestação cultural ora tratada como exótica, ora como sincretizada. Mas reduzi-las a esses aspectos também é uma violência, uma forma, às vezes consciente, às vezes inconsciente, de dominação. Suas histórias não costumam ser contadas por eles próprios, mas por pessoas que pouco ou nada conhecem suas realidades.
Foi sob o impacto dessas imagens que são construídas sobre a cultura afro amazônica que surgiu a “Negrtiar filmes e produções”, uma produtora audiovisual formada por pessoas negras e que busca gerar impacto social. “A Negritar nasce como esse grito de liberdade pra manifestar a cultura negra amazônica que durante muitos anos foi apagada, e hoje é motivo de orgulho para muitos”, explicou Joyce que além de produzir, atua em filmes e séries.
Fotos: rede social Joyce Cursino
Ela própria foi parar nas telonas. Atriz de cinema, TV e web, ela já interpretou personagens em produções locais, nacionais e internacionais, como “O futuro das florestas”, disponível no Amazon Prime Video. Foi ainda como atriz que percebeu uma “diferença” no cinema. Por isso decidiu ir para o outro lado, para trás das câmeras, escrever, produzir, contar outras histórias, buscar outros olhares, outras perspectivas. “Hoje a gente tá com essa missão de ecoar essas narrativas mais do que nunca porque a gente sabe quem são as pessoas que tem destaque, que tem acesso, nesse tipo de movimentação quando vem pra cidade e o nosso questionamento é o que fica e a gente se organiza pra fortalecer as nossas bases”, afirma a atriz e produtora.
Sempre em movimento
Criado em 2019 como uma forma de democratizar o acesso ao cinema nas periferias e comunidades tradicionais, o “Telas em Movimento” é um projeto da Negritar que chega a sua sexta edição com a inauguração de um novo espaço de formação no bairro do Jurunas. A ideia do lugar é agregar cultura e meio ambiente, valorizando mestres e mestras da cultura local. “Esse espaço vem pra trazer luz pra isso e dar um espaço pra que essas pessoas possam construir outras coisas a partir daquilo que elas já tem e do que a natureza também oferece pra gente”, explica Joyce.
Fotos: rede social Joyce Cursino
Inquieta, sempre em movimento e com uma energia que faz tremer, Joyce comenta sobre as novas produções que vem por aí. “A gente tá produzindo uma série de TV sobre as matriarcas da Amazônia, sobre esses saberes dos povos tradicionais. A gente tá com um futuro longa metragem sobre questões amazônicas que são muito urgentes pra nós. Também tô desenvolvendo um longa metragem de animação chamado “Iaçá, menina açaí” que vai apresentar uma heroína que salva o nosso futuro de todo esse caos que a gente tá vendo, vivendo e sentindo”, antecipa Joyce empolgada com os novos projetos.
Das periferias da Amazônia às telonas, sempre com os pés no chão, às vezes, inclusive, literalmente, Joyce Cursino desbrava um caminho que outros ajudam a pavimentar. O sangue cabano é refletido no sorriso largo que sempre estampa seu rosto e contagia o ambiente inteiro. Ativista das causas climáticas, das comunidades periféricas e dos povos tradicionais, ela vive seu processo de aquilombamento em uma cidade que passa por intensas transformações. Conversar com a Joyce em uma tarde de verão sob prenúncio de chuva foi embarcar em uma aventura futurística e ancestral.