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Por Kelvyn Gomes | Foto de capa: Acervo do Pássaro Rouxinol, 1950

No último dia 01 de junho começou oficialmente a quadra junina em alusão aos santos do mês. Além das quadrilhas, os reisados, bois, batucadas e danças de fita, no Pará, uma manifestação popular típica desse período são as operetas populares, ou pássaros juninos.

A tradição conta que além da euforia provocada pela economia da borracha, com a inauguração do Theatro da Paz em 1878, muitas companhias estrangeiras passaram a frequentar a cena artística de Belém. Eram espetáculos de dança e teatro, com artistas internacionalmente conhecidos, principalmente as óperas com seus coros e solistas famosos. A produção desses espetáculos era uma atração à parte. Sua suntuosidade movimentava a cidade e gerava curiosidade.

Mas o teatro, apesar de representar a diversidade através das artes, não era um lugar “acessível”. Apesar de contar com diversos setores, cada um destinado a um determinado público, aquele espaço havia sido pensado para as artes eruditas e as classes nobres, um catalisador de conflitos. Ainda assim, a população mais pobre, quando não estava na plateia, estava nos bastidores, na coxia. Durante o trabalho, os olhares por entre as brechas do cenário e as frestas dos camarins, permitiram um encantamento vislumbrando uma nova manifestação artística.

Letreiro do Cine Paraíso, um dos cinemas de ruas que Belém teve e que recebia apresentações dos Pássaros Juninos – Foto: Acervo do Pássaro Rouxinol

Influenciados principalmente por esses espetáculos artísticos, mas inspirados pela cultura amazônica, a população investiu nas suas próprias criações. Com retalhos e materiais comuns ao seu cotidiano como miriti, chita, patchouli, redes, inclusive de pesca e outros objetos usados principalmente como adereços. Ao invés da ópera clássica, eram embalados por músicas populares e de época como o tango, o bolero e as valsas. Além dos personagens considerados nobres, outros foram inseridos, eram pessoas comuns, do cotidiano da cidade, como os “matutos”, caçadores, pescadores, cabos e soldados e migrantes cearenses. Artistas clássicos passaram também a aderir ao movimento, principalmente músicos e escritores. Assim surgiram as operetas populares ou, como ficaram popularmente conhecidos, os pássaros juninos.

Um dos primeiros pássaros a surgir, e o mais antigo ainda em atividade, foi o Rouxinol. Criado em 1907 no bairro do Umarizal por Joaquim Pontes Souza, conhecido carinhosamente como Neco. Em 1930, o pássaro passou a ser responsabilidade da professora Julieta Malcher, como conta o atual guardião, Vanderlei Rodrigues. “Depois do seu Neco, o Rouxinol passou pra mão da dona Libanêa que ficou uns três anos com o pássaro, e depois passou pra mão da minha avó, professora Julieta que tomou conta até o seu falecimento em 1985”.

Da esquerda pra direita:
Sônia, Alzier Rodrigues, “o China do trompete”; Benedito Moraes Vila Real, o popular Santico; e Ana Malcher de Castro – Foto: Acervo do Pássaro Rouxinol

Vanderlei considera que desde que sua avó assumiu o pássaro junino, ele passou a ser referência por implantar o luxo na quadra. “Ela tinha turmas de mulheres que bordavam. Então ela fazia o curso de bordado e aproveitava as mulheres que participavam do curso para bordar as roupas da baronesa, da marquesa, do barão, da princesa, bordadas a mão. E o meu avô, por ser oficial do exército, marceneiro e carpinteiro de profissão, tomava conta da parte da carpintaria. Aí ele começou a implantar os capacetes na quadra junina. Ele fazia daquele compensado mais fino, fazia um alto-relevo na frente, aquilo tudo decorado, com lantejoula, aquelas coisas que existiam na época. E ele comprou um monte de espanadores com pena de Ema. Foi quando surgiu a pena nos capacetes, porque não tinham plumas. Quem olhava aquilo, que nunca tinham visto, achavam a coisa mais linda, porque era a novidade do momento”.

Com o falecimento da guardiã, o pássaro passou por um período de descanso do seu canto, retomando suas atividades no ano 2000, quando, a convite de Benedito Vila Real, o Santico, considerado um dos maiores barões da quadra junina, decidiram despertar o pássaro. Como os pássaros juninos também são uma tradição familiar e consideram que seus guardiões devem ser respeitados por sua importância histórica e cultural, Vanderlei lembra quando precisou falar com a mãe e as tias para ter autorização e poder retomar as atividades do pássaro respeitando a memória de sua avó, dona Julieta.

“Eu falei com os familiares, minhas tias, minha mãe ainda tava viva: vocês autorizam botar o Rouxinol? A vovó não tá, mas vocês são as filhas. ‘Não, pode botar, mas não venha fazer a gente passar vergonha, porque a tua avó…” Aí eu digo ‘não, pelo amor de deus, eu vou ter que dar meus pulos, mas que vai sair bonito, vai’”, contou Vanderlei.

Como atual responsável pelas atividades do pássaro que, aos 117 anos virou ponto de cultura, Vanderlei relata que o espaço onde acontecem as atividades do grupo, conta com um estúdio de gravação, uma sala de costura e uma sala de aula, onde ocorrem produções de áudio, oficinas de bordado e costura, e em breve de violão, todas gratuitas e abertas à comunidade. Essa mobilização demanda investimentos financeiros para ser viabilizada. O guardião e coordenador do ponto de cultura lamenta a falta de apoio e valorização, inclusive das autoridades públicas, principalmente das secretarias de cultura. Um dos sintomas dessa desvalorização são os cachês oferecidos para apresentações, considerados por ele como irrisórios.

Uma das apresentações do Rouxinol – Foto: Acervo do Pássaro Rouxinol

“Não tem condições da gente se apresentar como a gente se apresenta, com o cachê que tá aí, porque o brincante não paga nada, são os guardiões de grupo que bancam tudo. Aí tu imagina com os descontos de ICMS, ISS, com quanto esse grupo vai ficar. Aí a gente paga ônibus, músicos, lanche, o transporte de quem mora longe. Eu sou suboficial da reserva da polícia militar, eu tiro do meu as vezes, agora eu imagino aquelas senhoras que botam pássaro e não tem isso. A gente vai se apresentar no bairro, de graça, ou com ajuda de custo, porque eu devo a minha comunidade e porque eu cresci vendo essa cultura que eu trago de raiz”.

O guardião também faz um apelo às autoridades, lembrando da importância dos cordões de pássaro para nossa cultura. “Uma cultura que se diz genuína paraense, que não tem em outro canto do Brasil, ou do mundo, a não ser nesse Estado, não é verdadeiramente apoiada politicamente ou pelo governo”. Ele lamenta também que, por conta da falta de apoio, os pássaros juninos estão sumindo. “Naquela época eram mais de 400 pássaros em todo Pará. Então hoje, nós somos, no Pará, 25 pássaros. E eu gostaria que eles mensurassem isso aí, porque já é uma cultura centenária, é genuíno do Pará, aí de mais de 400 pássaros ficarem apenas 25 em todo Pará. Dando dignidade, fazendo festival de pássaro, colocando no Teatro da Paz, com cachê”, esclareceu o guardião. Ele conclui fazendo um apelo. “Quem tiver vendo esse vídeo, tenha mais amor por essa cultura, que é de vocês, é paraense”.

Junho é o mês da revoada dos pássaros, então é provável que você encontre um deles por aí abrilhantando a festa junina. E se você quiser apoiar ou conhecer o Rouxinol, o Ponto de Cultura onde funcionam os ensaios e as demais atividades do grupo fica na Marquês de Herval, 669, bairro da Pedreira.

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