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Por Rafael Arcanjo* | Foto: Daniel Janssens

No dia 29 de abril, a organização do Rock In Rio anunciou o “Dia Brasil”. Um momento da programação do evento voltado para celebrar e homenagear a música brasileira. Com artistas de diversos gêneros, como Samba, Rock, Sertanejo, entre outros, e de diferentes estados do Brasil, o que chamou atenção foi a falta de representantes da musicalidade do Norte.

Essa ausência de artistas e gêneros musicais da Amazônia, como o Carimbó, o Tecnobrega, o Siriá, e demais ritmos do nosso universo cultural, tornou-se rapidamente motivo de indignação entre a classe artística regional. Fafá de Belém, Joelma, Gaby Amarantos, Joelma Kláudia, e vários outros cantores da Região Norte, chamaram a atenção da organização do festival para essa “falha” no line-up do dia, programado para acontecer em 21 de setembro. Os músicos questionaram: como uma celebração da “Música Nacional” deixa de fora os artistas do Norte?

Em uma publicação no seu Instagram, que já acumula mais de 45 mil curtidas, a cantora Fafá de Belém opinou sobre esse acontecimento: “A Amazônia não faz parte do Brasil? A cultura amazônica, nortista, não é parte deste país? Onde está Dona Onete, Gaby Amarantos – vencedora do Grammy, Joelma, Aíla, onde estou eu? Onde está o carimbó, o siriá, o boi bumbá, o Caprichoso, o Garantido, Manoel Cordeiro, Felipe Cordeiro, Joelma Klaudia, Gangue do Eletro, aparelhagens (Carabao, Crocodilo, Tupinambá), Nilson Chaves, Arthur Nogueira, Suraras do Tapajós, Kaê Guajajara, as guitarradas do Pará, o tecnobrega, artistas indígenas, e tantos outros que levam a cultura do Norte no seu sangue e na sua vida? O Norte será sempre visto como peça decorativa de festas da elite? É muito triste sentir na pele a força da realidade batendo na nossa cara. O maior festival de música do país tem um ‘DIA BRASIL’ e nos coloca da porta pra fora. Mais uma vez nos provam que o Norte continua sendo um artigo folclórico usado como e quando querem, pra uma imagem ‘cool’. Pertencimento é muito diferente do uso por conveniência. Nós aprendemos isso a duras penas, e exigimos respeito!”.

Fafá de Belém. Foto: Bruna Castanheira

Nos comentários desse post de Fafá, outros cantores também expressaram sua indignação a respeito do assunto. “Não vão nos apagar. O Norte também faz parte da cultura brasileira!”, pontuou Joelma. “Com tanta riqueza cultural, inaceitável não ter nenhuma representatividade do Norte”, destacou a cantora Liah Soares. “O Brasil sem o Norte não é Brasil!”, ressaltou o cantor Jeff Moraes.

“Querem ouvir nossa música mas não querem nos levar para cantá-la?”, disse Gaby Amarantos em uma postagem na rede social X ( antigo Twitter).

O músico paraense, Felipe Cordeiro, também publicou um vídeo em seu perfil no Instagram falando sobre a ausência do Norte no line-up do “Dia Brasil”: “O Brasil forjou essa ideia de que somos um país multicultural. A própria música brasileira produzida no século XX falava de multiculturalidade e pretendia falar do Brasil inteiro. A Amazônia não ‘tá’ em nenhum desses recortes, nem na produção cultural do século passado. Mas, hoje, o Rock In Rio anunciou esse dia e mais uma vez a música do Norte do Brasil, que é tão rica, tem tradição, tem modernidade, tem vários gêneros de músicas pretas, músicas originárias, músicas urbanas, várias vertentes em vários estados do Norte do Brasil e ela não está representada no dia que tem a pretensão de ser um dia sobre ‘Música Brasileira’. Veja só, isso não vai mais colar”.

Em meio a toda essa polêmica, a assessoria de imprensa do festival afirmou em nota divulgada pelo Jornal OLiberal, que “o line-up do dia 21 de setembro, como anunciado durante coletiva de imprensa na tarde de ontem (29), apesar de divulgado, ainda está em construção e em formação”. Diante dessa nota, a pergunta que fica é: mas se o line-up está em processo de construção, por que já foi divulgado? Parece uma tentativa da organização do Rock in Rio de colocar “panos quentes” em um debate que ela não achava que iria surgir. 

Ainda nessa mesma declaração da assessoria, foi confirmado que artistas do Norte e de outras regiões estão em negociação com a organização do RiR (Rock in Rio), e que novidades devem ser anunciadas até o dia da apresentação. Confira a nota na íntegra aqui.

Joelma Kláudia. Foto: Jaime Souzza

Representatividade: por que é importante?

Um dos principais pontos reivindicados nas publicações dos artistas, e do público amazônico em geral, foi a representatividade. Para além da presença, ou não, de artistas do Norte no evento, esse acontecimento traz à tona questões mais profundas sobre a relação histórica do Norte com outras regiões do Brasil. A notícia sobre o line-up do Festival reforça discursos de que a Amazônia deve continuar sendo conhecida pelo  seu “exotismo”. “Exotismo” este que a diferencia do “resto do país”.  

O professor da Universidade Federal do Pará e pesquisador da cultura amazônica, Dr. Fábio Castro, explica que essa questão do se ver representado é uma condição socio-político-cultural fundamental. “Toda representatividade é importante. Representatividade é a condição política mais fundamental. A atividade artística, a produção cultural, são atividades plenas de política e é preciso reconhecer esse processo. Por isso, reivindicar fortemente a presença no Rock In Rio de músicos paraenses e da Amazônia, em geral, é algo muito importante. Por sinal, acho que reivindicar a participação de artista no ‘Dia Brasil’ é até pouco: pois não seria absurdo falar e reivindicar a organização para se ter um ‘Dia da Amazônia’”, explica.

Situações como a do Rock in Rio, nos fazem refletir sobre os processos históricos de constituição da região Norte. Silenciamentos, apagamentos culturais, são discursos que atravessam a história do Norte do Brasil. Não só na área cultural, mas na social, econômica, política, científica e etc. Na atualidade, esses apagamentos continuam a acontecer. 

“Não é algo pontual. É sintomático e estrutural, porque se deve ao mecanismo histórico que podemos chamar de colonialismo interno”, pontua o professor Fábio Castro. “Esse silenciamento ocorre sistematicamente em diversos setores da vida social, não apenas na cultura. Por que dizemos que a Amazônia é uma colônia do Brasil? Simplesmente porque ela é um espaço de expansão dos interesses produtivos do Sudeste brasileiro, seja como zona fornecedora de matérias primas, seja como reserva de mão-de-obra barata, seja como espaço de venda dos produtos da indústria cultural do Sudeste”, completa o professor.

Por outro lado, observamos a visibilidade que a Região Norte vem tendo nos últimos meses, tanto em relação a seus ritmos musicais, como em outras expressões artísticas. A Drag Queen maranhense Pabllo Vittar, que já viveu no Pará, lançou no último mês o segundo volume do seu disco “Batidão Tropical”, e dentre as faixas estão releituras e regravações de clássicos paraenses como “Rubi”, da Banda Ravelly, “Ai Ai Ai Mega Príncipe”, da Banda Bahtidão, e “Não Vou Te Deixar”, de Gaby Amarantos, popularizando e trazendo atenção à cultura paraense. Outro destaque neste ano foi a participação de Isabelle Nogueira, cunhã-poranga do Boi Garantido de Parintins, no Big Brother Brasil 2024, da Rede Globo, destacando mais ainda o Festival Folclórico de Parintins. Por isso, há uma dicotomia aqui: em alguns momentos e situações é importante destacar nacionalmente a cultura do Norte, mas, em outros, essa cultura deve ser silenciada. Por que isso acontece? Quais interesses estão por trás desse destaque versus silenciamento cultural? São questionamentos que surgem quando o Norte fica de fora do dia em que um dos maiores festivais do país “exalta” a música brasileira.  

“Penso que falta uma articulação de maior envergadura na cadeia produtiva cultural do estado do Pará. Se temos excelentes artistas, uma substância cultural de grande originalidade e produtores muito competentes, não temos uma indústria cultural local. Ou seja: falta o capital. Tecnicamente, o que falta é fazer um conjunto de arranjos produtivos capazes de produzir impactos comunicacionais de grande dimensão. E quem pode fazer isso? O Estado. Quando falamos em política cultural precisamos pensar além do bem cultural, do serviço cultural e da arte: precisamos pensar na articulação geral da economia da cultura”, explica o professor Fábio Castro.

Entre vários debates e reflexões, o que não se pode é ser permissível com situações semelhantes a do “Dia Brasil”, que perpetuam o apagamento da região amazônica enquanto integrante do nosso país, assim como sua população e cultura. Essas ocorrências não deveriam mais acontecer.

*Texto supervisionado pela jornalista Vívian Carvalho

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