SÉRIE ESPECIAL ANIVERSÁRIO DE BELÉM
O urubu, ave de características inconfundíveis, sempre fez parte do imaginário e da realidade cotidiana de Belém. No entanto, seu papel nas ruas da cidade foi transformado ao longo dos séculos, passando de “agente de limpeza” a símbolo de incômodos urbanos e preocupações sanitárias.
No primeiro episódio da série especial sobre os 409 anos de Belém, o Portal conversou com o historiador Wendell Cordovil, especialista em História Ambiental e Alimentação, para entender melhor a relação entre os belenenses e esse pássaro, desde sua reverência no século XIX até sua reconfiguração como um símbolo problemático na atualidade.
Por Kelvyn Gomes/Imagem: Oswaldo Goeldi, O poente, xilogravura
Uma história controversa
Se hoje a ave é recorrentemente lembrada pela música da cantora e compositora do carimbó chamegado, Dona Onete, o historiador Wendell Machado destaca que os urubus de Belém têm uma trajetória que reflete as transformações sociais, culturais e ambientais da cidade. “Nos séculos XIX e XX, os urubus eram fundamentais para a manutenção da higiene urbana”, explica Wendell que é mestre em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará.
Segundo o pesquisador, os animais desempenhavam um papel crucial na limpeza das vias públicas, consumindo restos de alimentos e cadáveres de outros bichos, como gatos e cães. Essa função foi reconhecida ao ponto de serem quase “divinizados”, destaca Wendell. “Em 1888, um poema publicado em um jornal que circulava em Belém, clamava por Deus e o urubu para manter as ruas limpas”, uma metáfora para a importância da ave na preservação da higiene pública, comenta.
Naquela época, os urubus eram protegidos por leis municipais que os viam como agente de limpeza e parte essencial da estrutura urbana. “Cidades como Belém e Manaus chegaram a estabelecer multas para quem matasse um urubu, chegando a ser considerada uma infração grave, com punições como prisão ou multas”, diz Wendell. Essa proteção, no entanto, não visava necessariamente os direitos dos animais, mas sim garantir que o processo de limpeza da cidade fosse eficiente.
Mas a história do urubu e sua relação com a cidade sofreu uma reviravolta na virada do século XIX para o século XX. A ave que reinava soberana perdeu seu status de “agente de limpeza” com o surgimento da febre aftosa, doença que atacava o gado e ameaçava a economia local, o que fez com que os urubus fossem repentinamente considerados vetores do vírus que causa a doença. Estudos científicos, como os realizados em Minas Gerais, apontavam que as fezes dos urubus poderiam disseminar a doença entre os rebanhos. “Com isso, os urubus passaram de heróis ambientais a vilões, com as leis de proteção sendo progressivamente derrubadas”, observa o historiador.
A partir de 1910, uma campanha de extermínio foi desencadeada, e quem matasse um urubu passou a ser remunerado, situação completamente diferente da que o animal vivia no século anterior. O urubu, que antes era visto como essencial para a limpeza das ruas, passou a ser alvo de perseguição. “O medo da febre aftosa e a mudança de paradigma sobre a função do urubu na cidade fizeram com que ele se tornasse um estigma ambiental e sanitário”, afirma Wendell.
Um protagonista
Apesar das mudanças na forma como o animal era visto e tratado, o urubu ainda ocupa um lugar de destaque na cultura popular e no cotidiano da cidade de Belém. “Atualmente, os urubus continuam a ser personagens significativos em manifestações artísticas, como na fotografia de Nay Jinknss, nos quadrinhos de Amanda Barros, e até na música de Dona Onete, que canta sobre o ‘urubu malandro’ que sente saudades do Ver-o-Peso”, explica Wendell.
No entanto, o urubu não é apenas um símbolo artístico, agora ele também é frequentemente associado ao abandono e à sujeira nas ruas da cidade, o que o torna um incômodo para muitos moradores e visitantes. Ao mesmo tempo que são protegidos por leis de direitos dos animais e celebrados artisticamente, são acusados de serem sinônimos de problemas de higiene urbana. “Na visão contemporânea, o urubu é visto como um indicador do descarte inadequado de lixo, uma metáfora da degradação ambiental”, reflete Wendell.
Símbolo Cultural
O historiador conclui ressaltando que, independentemente das controvérsias, o urubu permanece um personagem indispensável na história e na ecologia da cidade. “Os urubus continuam a ser agentes ambientais, interagindo com o lixo e desempenhando um papel no equilíbrio ecológico”, afirma. Porém, como observa Wendell, o urubu continuará a ser uma presença indiscutível na história de Belém, não apenas como um símbolo de contradições ambientais e culturais, mas também como um elemento essencial para a compreensão da dinâmica social e ecológica da cidade.
Muito interessante e curioso saber que o urubu já foi considerado tão importante ao ponto de ser multado,se matasse um urubu, e tempos depois mesmo com a mudança da ideia sobre ele, ainda continua sendo importante e presente na nossa história até hoje.