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Por Kelvyn Gomes / Foto: Marco Nascimento – Ag. Pará

Após a procissão de domingo que leva a imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré, da Catedral Metropolitana de Belém, no centro histórico da cidade, à Basílica Santuário, no bairro de Nazaré, as famílias se reúnem ao redor da mesa para confraternizar e se deliciar com os tradicionais pratos da gastronomia paraense.

O almoço de domingo como prática cultural

Faz parte da tradição dos devotos de Nossa Senhora de Nazaré reunir amigos e parentes após a grande procissão do domingo, seja como forma de confraternizar ou de pagar uma promessa, um momento de comunhão entre familiares e amigos com o sagrado, representado pela santa. O antropólogo e professor Raymundo Maués, considera que não há festa religiosa sem comida de festa, uma forma de homenagear, através do sacrifício, o sagrado. “As oferendas aos deuses e às entidades sobrenaturais… se fazem em rituais festivos… se partilha e se troca várias espécies de comidas e bebidas”, explica o professor em trabalho publicado sobre o tema.

Ainda que considerados pratos típicos da culinária paraense e presentes no cotidiano da cidade em baiucas espalhadas pelas esquinas de Belém, tanto a maniçoba como o pato-no-tucupi, por exemplo, podem ser pensados como iguarias sofisticados pelos seus ingredientes e formas de preparo, e típicos do Círio, “combinando produtos de origem animal e vegetal, a que se juntam processos culinários cuja realização envolve muito esforço e perícia, para que seja possível obter iguarias cujo sabor é capaz de encantar o paladar de todos os participantes do ritual”, esclarece Maués.

Fotos: Agência Belém

Como prática cultural, o almoço do Círio, ou os pratos comumente associados à celebração, estão presentes também na mesa de famílias não católicas, como na casa da professora Amanda Proença. Como muitas outras famílias paraenses, a da professora Amanda é formada por católicos e protestantes, mas o almoço de domingo não se restringe a um grupo religioso.

“Até os meus 8 anos minha família só frequentava a igreja católica, até que em 2001 meu pai fez a conversão. Mas, até então, ele sempre foi o Círio. A mãe dele sempre fez questão de grandes banquetes e missas que antecediam o Círio. Minha avó materna também foi católica por muitos anos até virar protestante depois de adulta, e mesmo com poucos recursos eles também tinham o hábito de comemorar o Círio. Mesmo depois de convertidos, para o meu pai em específico, ele não abre mão da tradição alimentar, por mais que não haja uma conotação de religiosidade pelo símbolo do Círio, ele tem lembranças de uma vida toda comendo maniçoba, pato, e se reunindo com a família, neste período de outubro. Então ainda hoje a gente acaba tirando um final de semana para comermos juntos alguma dessas comidas”, conta Amanda Proença.

Moradora do bairro da Pedreira em Belém, território com tradição em religiões de matriz africana, a professora que hoje é evangélica, também considera que a resistência de certos grupos religiosos a determinados alimentos considerados típicos de festas de santo, por exemplo, vem mudando com o tempo. Ela afirma que atrelado ao religioso existe uma cultura que move a cidade toda. “A cidade toda cheira a maniçoba, não tem quem aguente ficar sem uma marmitinha. Sem dúvida, outubro sem maniçoba é outubro triste, eu viro uma caçadora de maniçoba. Na verdade eu até faço para vender, a minha é ótima também”.

A planta que tudo dá

Tucupi, Jambu e Maniva são ingredientes essenciais na cozinha paraense. Sem eles, o almoço do domingo do Círio não teria maniçoba, pato no tucupi e arroz paraense, algumas das principais estrelas da culinária local. Mas você sabia que esses e outros ingredientes são oriundos da mandioca?

Macaxeira, mandioca ou aipim, dependendo da região de onde você vem, é uma raiz originária da Amazônia e teria sido domesticada por grupos indígenas da região há pelo menos nove mil anos.

Existem também cerca de quatro mil variedades da planta divididas em dois grupos: a mansa e a brava. Pesquisadores afirmam que a diferença está na quantidade de ácido cianídrico presente na raiz, não sendo possível identificar a olho nu. Mas, na cultura amazônica, a experiência de vida diz outra coisa. Dona Teófila Nascimento, natural do município de Tomé-Açu, no Nordeste do Pará, conta que a mandioca “quando ela é mais molinha, é mansa; mas quando ela é dura, não amolece nem na (panela de) pressão, ela é braba”.

Fotos: Agência Pará

Trabalhadora da roça, vinda de uma família de fazedores de farinha, um dos subprodutos da mandioca, Dona Teófila explica o processo de tratamento da raiz. “A gente colhia, aí depois se juntava pra descascar e colocar de molho no bracinho (igarapé). Depois tinha que ralar e espremer (no tipiti, instrumento de origem indígena) e tirar o tucupi. Aí a gente tem o tucupi. Depois era só tirar o que ia ser goma (de tapioca) e torrar o que ia virar farinha d’água, de tapioca, ou beiju. Aí a maniçoba é da folha (moída), a maniva né?”.

Uma cozinha mestiça

Os subprodutos da mandioca são diversos e essenciais na culinária da região, ganhando destaque em épocas festivas, como o Círio de Nazaré, considerado o “Natal da família paraense”. A eles são adicionados outros ingredientes como aves, carnes e embutidos, frutos do mar, grãos, legumes e verduras, além de formas de fazer oriundos de processos de preparação de pratos de diferentes culturas. A inserção desses e outros elementos foram aderidos ao dia a dia da cozinha paraense.

Sidiana Macedo, historiadora e professora de história do Campus de Ananindeua da Universidade Federal do Pará, explica que a cozinha paraense é resultado de um longo processo de misturas, não apenas de ingredientes, mas de saberes e práticas, além de diversos modos de fazer herdados da cultura indígena, africana e europeia. Esses processos, explica a pesquisadora em sua tese de doutoramento pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia (PPHIST) da Universidade Federal do Pará (UFPA), são resultados de interações, às vezes violentas, entre estas diferentes culturas.

Essas trocas intensas entre e de diferentes origens refletem no dia a dia do fazer e do comer na cultura da região, mas principalmente em épocas festivas, como é o caso do Círio de Nazaré que, além de uma festa religiosa também está sempre associado aos pratos típicos, sendo um momento de confraternizar ao redor da mesa, experimentando os sabores e as memórias construídas a partir do alimento. “O Círio é um momento único de confraternização entre as pessoas que perpassa os hábitos alimentares. Daí que existe o que os paraenses denominam de “almoço do Círio”, parte importante da festa de Nossa Senhora de Nazaré”, explica a professora Sidiana Macedo em estudo publicado em parceria com o também pesquisador José Maia.

Outubro é um período festivo em Belém, há aqueles que comemoram a festividade de Nossa Senhora de Nazaré, outros que aproveitam o feriado prolongado para reunir a família e receber as pessoas em casa, o mês nazareno também é um período de reencontro com a nossa ancestralidade a partir das nossas práticas alimentares ainda vivas em meio a tantas mudanças atreladas à globalização do paladar, em que muitas famílias deixam de preparar suas próprias comidas, valorizando a cultura alimentar da região.

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