De Felipe Vilhena | Foto: Felipe Vilhena
Mayrla Andrade Ferreira é artista, professora e pesquisadora dos processos que envolvem a dança. Ingressou formalmente na dança com 9 anos de idade na Escola de Teatro e Dança da UFPA e hoje é professora da instituição há 14 anos. Mayrla também administra a Escola de Dança Casa Ribalta, fundada há 30 anos, em Ananindeua, por sua mãe e suas tias, Marlene e Elizabeth, com objetivo de formar grandes bailarinas e bailarinos.
Um ponto marcante na carreira da artista é o desenvolvimento do conceito “habitante-Criador”, usado na dissertação de mestrado . O termo indica que o espaço de habitação de um indivíduo pode servir como matéria-prima para criação de movimentos diversos. A ideia de habitar e criar é fortemente adotada nas performances organizadas pela Casa Ribalta e inspirou mais de 15 espetáculos, com o mais recente chamado “Habitante-Criador”.
A professora Mayrla Andrade conta em detalhes sua trajetória ao Portal jambu e explica como essa arte atravessa diversas áreas de sua vida. Também fala sobre a importância da Casa Ribalta em sua formação pessoal e profissional.
Portal Jambu: Quando surgiu seu interesse pela dança?
Mayrla: Meu interesse com a dança nasceu junto com minha própria relação de vida. Minha mãe sempre teve o sonho de dançar. Quando ela engravidou, disse que tinha vontade de ter uma bailarina para manter seu sonho vivo. Então, eu acredito que essa minha vontade de dançar nasce do cordão umbilical, dessa relação de desejo da minha mãe que não teve a possibilidade de realizar esse sonho pela falta de acesso e frágil condição socioeconômica.
Eu comecei a dançar na Escola de Teatro e Dança da UFPA, que era uma escola que dava aula em meados dos anos 90 para crianças e adolescentes. Estudei lá por anos e algumas das pessoas que conheci no período são meus parceiros de trabalho, já que me tornei professora da instituição. Conforme essa minha paixão crescia, me formei no curso básico de bailarinos, depois fui para o curso técnico e intérprete criador, fiz uma graduação em licenciatura em educação física e fiz especialização em diversas áreas, até chegar ao ponto em que minha vida era toda voltada para a dança. Então essa vontade de criança se perpetuou para essas relações da adolescência, juventude e da vida adulta.
Portal Jambu: De que forma o estudo na universidade contribuiu para o seu entendimento sobre a dança?
Mayrla: Eu tenho muita sorte de ter tido essa compreensão da dança desde cedo, com a minha pra própria casa, e isso foi se espalhando até se tornar um processo de ensino. Eu digo que essa compreensão se estendeu, porque (na acadêmia) eu tive a oportunidade de passear por várias linguagens da dança, como jazz, dança contemporânea e moderna, o que ampliou meu entendimento. Concomitantemente, a Casa Ribalta foi crescendo e abrindo para outros professores que me apresentavam ainda mais linguagens. Sem contar também com a contribuição de outros locais que eu dançava nesse processo, como o Balé Vera Torres, Clara Pinto e Jackeline Mendes.
Mas minha inserção na Escola de Teatro e Dança da UFPA foi a grande influenciadora para eu entender a dança e seguir carreira, tanto artística quanto acadêmica. Com esses anos de formação, eu consegui viver os mais variados processos da dança e também entender a necessidade de estudá-la para me tornar uma artista-professora-pesquisadora. A dança contemporânea me ajuda a entender mais isso no corpo, porque ela vai pesquisar muito mais o nosso dia a dia. Quero ressaltar também que os festivais que eu e os alunos participamos também são um processo formativo importante. Eles auxiliam tanto a mim, como coreógrafa, quanto os alunos que demonstram no palco tudo que aprenderam em sala de aula.
Portal Jambu: Em que momento você passou a administrar a Casa Ribalta junto da sua mãe Marlene e a tia Beth?
Mayrla: Eu começo a cuidar junto da casa com a minha mãe e minha tia por volta de 2004, dez anos depois da fundação da escola. É uma data marcante pelo fato de ser o momento em que criamos a Ribalta Companhia de Dança, um núcleo dentro da Casa Ribalta com objetivo de trazer artistas, professores e pesquisadores para realizar um trabalho de formação e pesquisa da linguagem contemporânea. Então eu assumo a direção artística da casa e também é nesse momento que passo a dar aula mais intensamente, assumindo a grande maioria das turmas.
Portal Jambu: Em sua dissertação de mestrado, você desenvolveu o conceito de “Habitante-Criador”. A Casa Ribalta dialoga de alguma forma com esse conceito?
Mayrla: O conceito Habitante-Criador é um grande desvelar todos os dias e ainda está em processo de formação. Eu demorei um tempo para entender que esse espaço (a casa), algo tão significativo na minha vida, também poderia ser um objeto de pesquisa. Foi dentro do programa de Pós-Graduação em Arte (PPGArte) da UFPA, na linha de pesquisa de poéticas em arte, que descobri que o meu grande objeto de pesquisa não estava “fora” de mim. Foi quando percebi que eu poderia escrever uma dissertação sobre a casa onde eu vivo.
Eu passo a entender que dentro desta casa, onde eu habito e crio danças, era o meu local de encontro. Então, o conceito surge para falar sobre a minha história, aquele que habita na sua casa e cria a partir dela. Habitar e criar tornam-se, então, algo que diz respeito aos hábitos e histórias de um indivíduo e como isso se relaciona com seu local de origem, tanto que hoje a gente não abre mão das histórias de vida dos alunos como matéria-prima que articula os processo de criação, gestualidade e dramaturgia da Casa Ribalta.
Ao final do mestrado, a banca perguntou para mim: “Você já falou da sua casa, das pessoas que habitam e criam com você, mas e agora? Chegou o momento de você sair da sua casa e ir para a cidade e ver como o habitante-criador é em outros lugares dela”. Ali eu entendi que esse conceito não era só meu. Ele vai falar de todo aquele que habita em uma cidade, cria sobre ela e que está produzindo suas histórias, memórias e processos artísticos. Então, eu saí de casa para entender como as narrativas que ouvia aqui dentro reverberam lá fora. Com isso, fizemos mais de 30 intervenções com a Ribalta e compreendemos que habitar e criar é um processo de dança, formação e de vida.
Portal Jambu: Com trinta anos de existência, como você enxerga a importância da escola para o crescimento da dança em Ananindeua?
Mayrla: Eu enxergo ele de forma transformadora. Eu diria que a Casa Ribalta transforma os habitantes-criadores da cidade de Ananindeua, porque eu fui a primeira a ser transformada, mas também por receber diariamente alunos que tiveram suas vidas transformadas. Esse impacto tem dimensão em diversas dimensões, seja cultural, social, artística, econômica, estética ou até política. Para exemplificar, eu tinha um aluno que é o Fernando Nobre Júnior. Ele começou a dançar aqui com a gente e hoje ele é um dos bailarinos efetivos do Teatro de La Plata, na Argentina. Também temos um documentário sobre esse tema e lá ele afirma que a primeira linha do currículo dele diz: “Fui bailarino da Escola de Dança Ribalta”. Pra mim isso é uma grande emoção.
Portal Jambu: Mesmo depois de tanto tempo trabalhando nesta casa, qual a sensação de continuar recebendo crianças e adolescentes com vontade de ingressar na dança?
Mayrla: A sensação é que a gente tem muito a fazer. Com trinta anos de existência, a gente deseja que a Ribalta alcance mais vidas, porque a cultura e a arte são uma necessidade para todos. Eu vejo as crianças entrando e enxergo futuros artistas com seus sonhos realizados, elas entram aqui para começar na dança, mas, além disso, elas estão começando a interagir num coletivo, de enfrentar um público, falar o que está sentindo através dos gestos (afirma de forma emotiva). Então eu fico super emocionada, porque são coisas da vida, porque primeiro me transformou. Eu vejo como as crianças são afetadas por essa formação, a dança é uma grande estratégia para ser o que você quiser na vida como um todo. Eu me sinto muito realizada, muito realizada de, há trinta anos, batalhar por esse espaço, saber que é um espaço de resistência local. A gente tem muito recente o teatro de Ananindeua, mas passamos trinta anos sem fazer espetáculo no teatro de Ananindeua, tínhamos que ir dançar em outros lugares. Mesmo assim, sempre fizemos trabalhos muito bons aqui com intervenções nas praças e ruas. Nem imaginávamos que um dia essas crianças teriam a possibilidade de fazer arte em seu local de origem.