Por Cristiane Mesquita
A literatura de autoria feminina passa pela constituição do sujeito feminino, no decorrer das transformações sociais, no intuito de desconstruir o estereótipo de uma condição feminina no campo das relações de poder e de gênero.
Desde o século XIX, a mulher vem assumindo papéis sociais em diferentes funções, além do trabalho doméstico e do cuidado da família que a ela sempre foi destinado. Ainda assim, fomos colocadas em um papel inferior em relação ao mesmo trabalho realizado por um homem, devido a sua “condição feminina”, inúmeras vezes usada como argumento para justificar a subalternização e marginalização seja no trabalho ou na sociedade.
É apenas a partir de 1980 que deixamos de falar em “condição feminina” e passamos a estudar as mulheres. Miriam Gross explica que isso só foi possível graças às pesquisas que nos permitiram perceber que não era mais possível falar de uma única condição feminina na sociedade, já que existem diferenças de classe, regionais, faixas etárias, de ethos, raça e de gênero entre as mulheres.
Esses estudos de gênero permitiram que ampliassemos as discussões sobre o tema da “condição feminina” e sua forma biológica, da mesma forma que contribuiu significativamente para desconstruir estereótipos negativos sobre a intelectualidade feminina e seu poder de construção filosófico e estético criados pelo sistema ideológico cristão e patriarcal.
Uma mudança positiva que atingiu a literatura possibilitando a produção de obras com base na observação e na concepção de mundo do ponto de vista das mulheres. A literatura de autoria feminina se tornou palco aberto para desempenhar vários papeis, um grito de liberdade contra o controle da censura social, argumentava Ruth Brandão.
Agora, no palco social, artístico, literário dirigido e encenado pelas mulheres autoras, é possível assegurar o direito de fala, nas vozes de suas personagens ou narradoras, tornando-se o sujeito que fala, fortalecendo o lugar que ocupa na sociedade, possibilitando que as mulheres que se (re)conhecem no campo literário, sejam representadas e espelhem outras mulheres.
A literatura de autoria feminina contribui para o dessilenciamento de um grupo marginalizado, não apenas representando o sujeito que existe no gênero, como também traz à tona questionamentos críticos relacionados à raça e a classe social.
Magda Potok-Nycz argumentava nos anos 2000 que a contribuição fundamental da literatura de autoria feminina estava na capacidade de autorrepresentação das escritoras. O discurso autobiográfico, o autotematismo, o domínio da personagem feminina e a reinterpretação das figuras femininas (históricas, míticas, literárias) legadas pela cultura masculina dominante, agora passa a ser abordada a partir do lugar de fala de onde se representa e de onde se compreende como um sujeito que tem sua própria voz.
Mas esse outro olhar só é possível quando os sujeitos subalternizados passaram a reivindicar o direito sobre suas identidades, construídos, por exemplo, no seio dos movimentos feministas ao longo da História. Essas lutas desconstruíram – e desconstroem – o papel da mulher, antes associado ao sexo biológico/fêmea, a objetificação e sexualização dos corpos. E tenta trazer o direito da mulher a se manter em uma condição de poder, seja no espaço privado, seja no público.
Se a literatura de autoria feminina foi/é um espaço em que mulheres representam mulheres no decorrer das histórias que representam a vida no cotidiano da sociedade, ler a literatura produzida por mulheres é também um ato revolucionário que ajuda a restaurar, valorizar e visibilizar intelectualmente mulheres que sempre foram excluídas da produção racional e relegadas a uma condição de “tristes, loucas, ou más” por aqueles que ainda hoje praticam a misoginia contra o corpo, a alma e o pensamento femininos.
A literatura de autoria feminina é um legado delas, é um direito que as mulheres têm de demonstrar o que elas são e pensam sobre si mesmas e sobre a vida social.
Profa. Adjunta do Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará (ILC/UFPA). Líder do Grupo de Pesquisa Mulheres Amazônidas e Latino-americanas na Literatura e nas Artes (MALALAS/UFPA-CNPq). Autora dos livros Riscos de Mulher (Editora Todas as Musas, 2021) e Quatro paredes e eu (Coleção Mulherio das Letras- IV, Editora Venas Abiertas, 2023).