Portal Jambu

Bastante comuns na região amazônica, as letras pintadas na proa das embarcações que circulam pelos rios amazônicos são mais do que simples identificação para esses veículos, elas carregam histórias, saberes e fazeres de uma região rica em diversidade. Flutuam pelos rios com seu colorido, chamando atenção de quem passa e despertando a curiosidade sobre sua história e formas de fazer. O Portal Jambu foi atrás dessa história.

Por Kelvyn Gomes/Foto: Acervo Letras Que Flutuam

Rios de história

Uma das maiores referências sobre a Amazônia são seus rios. Vias de locomoção que serviram, inclusive, como estrada para a colonização, como, entre conflitos e tensões, para trocas culturais. São pelos rios que circulam os mais importantes veículos da região: as embarcações. De diferentes tamanhos e cores, transportando pessoas e mercadorias, sem os barcos nada, ou muito pouco se saberia sobre o Norte do Brasil. São eles que nos permitem sair dos grandes centros urbanos, e adentrar nos rincões da floresta, transpondo as possíveis últimas fronteiras.

Essas embarcações costumam ser tradicionalmente fabricadas na própria região. Desde a coleta da matéria-prima, a madeira, produto do qual geralmente elas são fabricadas, até o acabamento e a finalização. Este é um saber ancestral, possivelmente herdado dos povos originários e transmitido oralmente de pais para filhos. Uma das etapas mais importantes culturalmente na fabricação dessas embarcações é o seu processo de “acabamento”. Desde a escolha das cores que, combinadas, caracterizam cada embarcação, aos nomes que as batizam.

Letras importadas, tradição genuinamente amazônica

Uma tradição que faz parte desse processo, são as “Letras Decorativas Amazônicas”, ou popularmente conhecidas como “letras de barco”, é o que conta a professora e pesquisadora Sâmia Batista, do Instituto de Ciências da Arte (ICA), da Universidade Federal do Pará (UFPA). A pesquisadora conta que esta é “uma manifestação visual popular amazônica” surgida inicialmente como uma necessidade prática, mas que se desenvolveu e deu origem à visualidade das letras que decoram e identificam as embarcações que circulam pelos rios da região.“Elas surgiram a partir do momento em que a Capitania dos Portos passou a exigir que os barcos fossem identificados”, explica Sâmia.

Conselheira do Instituto Letras que Flutuam, a pesquisadora da UFPA conta que a estética e o uso das letras de barco, ou “Letra Decorativa Amazônica”, como foi batizada pelo projeto, são marcas das trocas culturais, políticas e comerciais dos tempos em que a região viveu o auge da economia gomífera com a exploração da borracha na Amazônia. “Essas letras que foram para os barcos, elas já existiam nas fachadas dos comércios. Se a gente for buscar em fotos históricas do centro comercial de Belém, a gente vai ver letras que a gente chama vitorianas. São letras que vem de uma influência inglesa, ela tá vinculada ao início da publicidade, era uma letra com exagero visual, pra chamar atenção, ela vem nas embalagens, nos produtos, pra amazônia, vem nos tipos móveis, nas letras de metal, nos livros, nos impressos, no geral, e aí ela vai para o barco”, conta Sâmia.

A adoção desta caligrafia pelos abridores de letras amazônicos não se restringe a uma mera reprodução de seu formato, Com o tempo, elas vão sendo aperfeiçoadas e se conformam de acordo com as vivências e experiências locais, tomando feições próprias e assumindo características particulares. “A medida que ela vai se espalhando pelo território amazônico, esse homem amazônico começa a dar o contorno dele, começa a dar as suas próprias experiências estéticas. É quando ele mistura com paisagem, é quando ele faz o caqueado, é quando ele faz sombra gradiente. Aí essa letra, quando ela chega no barco e é apropriada, ela ganha identidade própria”, analisa a pesquisadora.

Não se tratando de mero identificador, a pesquisadora destaca que a tradição de enfeitar veículos se manifesta em outros contextos na América Latina. Na Colômbia, o colorido das Chivas, ônibus decorados que servem como transporte público em diversas regiões do país, e também os ônibus argentinos com o Fileteado Porteño. Ainda que muito tradicionais, a publicitária observa que na região da Amazônia Oriental pelo menos, já há uma atualização dessas manifestações.

“A pintura das rabetas, não só com pincel, mas também com grafite, né? O grafite já tá associado a uma velocidade exigida pelo mercado, né? E associada principalmente a juventude que está trazendo uma transformação dessas estética também, uma espécie de modernização. O grafite é mais rápido do que o pincel, ele é atribuído a um veículo mais rápido que a rabeta e é feito pela juventude, que já é uma juventude que a gente pode até entender como um personagem precarizado da história. Então ele pinta mais rabetas com o grafite pra ser mais rápido, diferente do pintor tradicional que leva mais tempo, porém fazendo um trabalho mais apurado”, destaca.

Tradicionalmente, essa produção é associada aos homens, herdada de pai para filho, por se tratar de um ambiente “masculinizado”, o ambiente dos portos, um lugar considerado pela tradição patriarcal como um lugar não adequado à presença ou à participação feminina. Mais recentemente, com o desenvolvimento de atividades que deram visibilidade à caligrafia amazônica, têm-se notado o surgimento de uma demanda graças ao interesse de mulheres por esta atividade. Ainda que elas tenham se dedicado a explorar outros suportes que não apenas as embarcações, como na moda e na decoração, tanto os pesquisadores quanto os fazedores têm observado este movimento como positivo, por ser uma oportunidade de manter e perpetuar a tradição caligráfica.

Letras que flutuam

Com o intuito de valorizar o trabalho dos “abridores de letras”, artistas que pintam letras e símbolos nas embarcações de regiões ribeirinhas do estado do Pará, o Projeto “Letras que Flutuam” foi criado a partir das pesquisas da type designer e tipógrafa Fernanda Martins. Fernanda teve contato com as “letras” em uma passagem pelo município do Acará e percebeu que aquilo era “especial” passando a registrar aquela manifestação. A tipologia gráfica amazônica foi então tema de sua monografia de Especialização no ICA, onde ela também se associou a Sâmia Batista e as duas decidiram por criar um projeto cultural, nascendo assim o “Letras que flutuam”.

Com o “Programa Amazônia Cultural”, de 2013, do Ministério da Cultura, o projeto buscou mapear e reconhecer esses profissionais, dando visibilidade a um saber popular que é fundamental para a identidade local, a partir de um documentário, “Letras que flutuam”, disponível no Youtube. Esse ano o projeto virou instituto, uma demanda dos próprios abridores que, organizados, observaram que havia uma insegurança jurídica e financeira relacionada a procura mercadológica pelo seu fazer artístico.

Os “abridores de letras” vão além da função prática de pintar embarcações; suas obras são carregadas de simbolismo e arte, refletindo a relação das comunidades ribeirinhas com o rio e o cotidiano. O trabalho desenvolvido tem sido crucial para preservar e valorizar esse ofício, reconhecendo-o como uma expressão única da arte popular paraense. O Projeto “Letras que Flutuam” contribui para garantir que esse legado não se perca, transmitindo o conhecimento e a tradição das futuras gerações.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Portal Jambu