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Por Kelvyn Gomes/ Foto: Facebook “Círio de Nazaré”

A corda que puxa a berlinda no Círio de Nazaré é um dos maiores símbolos da festa da padroeira da Amazônia. Considerada como o ápice das promessas, encarar o aperto sob forte calor e levar um pedacinho dela para casa são uma tradição para muitos devotos. No segundo episódio da série especial sobre o Círio de Nazaré para o Portal Jambu, você vai conhecer um pouco sobre a origem da tradição da corda e histórias de promesseiros que encaram o desafio ano a ano em homenagem à santa.

A corda do Círio

A corda é um elemento tão importante no Círio que parece impossível imaginar a procissão de domingo sem ela. Mas nem sempre foi assim. A primeira romaria em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré em 1793 não tinha corda. Somente em 1885, após uma cheia na região da rua da praia, hoje Ver o peso, que a corda foi casualmente inserida, tornando-se uma das maiores tradições do cortejo. “O carro que levava Nossa Senhora de Nazaré atolou. A decisão foi puxar a carroça, com uma corda. Depois desse episódio, vários significados foram atribuídos a ela, inclusive associando como o espaço não só de carregar a berlinda, mas também de separar o povo dos clérigos da Igreja e das mais diversas formas como a gente tem até hoje como promessa”, conta o professor e historiador Michel Pinho.

O historiador considera que a corda tornou-se um elemento que agrega as pessoas como um símbolo de fé. “Existem pessoas que se organizam durante o Círio com suas comunidades pra juntos fazerem camisas pra irem juntos, né? No Círio de Nossa Senhora de Nazaré carregando as cordas e no final dele levar um pequeno pedaço como símbolo daquele Círio”, explica Michel. Cortar a corda e levá-la para casa como sinônimo de fé, e de prova que enfrentou o martírio da procissão, tornou-se um hábito perigoso nos últimos tempos.

A corda se transformou em mercadoria pelo seu valor simbólico agregado pelos próprios promesseiros, tendo sido até anunciada em sites de compra e venda na internet. Para levar um pedacinho do objeto para casa, além de brigas generalizadas, foram registradas nos últimos anos a utilização de instrumentos cortantes para romper a espessa camada de fibras entrelaçadas, colocando em risco a segurança de todos os fieis presentes na grande romaria. Alguns acidentes foram registrados e por conta disso a arquidiocese de Belém, responsável pela festa, lançou a campanha “não corte a corda”.

Foto: Acervo Ascom Basílica de Nazaré

A corda que conhecemos hoje e que percorre as ruas de Belém no segundo domingo de outubro puxada por milhares de promesseiros também mudou ao longo dos anos. Até 2003, a corda de Nazaré era bifurcada, em formato de “U”, por questões de segurança, no ano seguinte adotou-se o formato linear com as “estações” conectando as partes do longo cabo, como informa a Basílica de Nazaré. Outra mudança importante ocorrida ao longo dos anos foi a “unificação” da corda para homens e mulheres. Antes, como explica também Michel Pinho, existiam duas cordas, uma frequentada apenas por mulheres, outra apenas por homens.

A força que vem da fé

Como expressão de fé e devoção, enfrentar a penitência da corda em gratidão a uma graça alcançada não é uma tarefa fácil nem para os mais fortes dos homens ou das mulheres. Como estratégia, muitos romeiros formam grupos com amigos e familiares para encarar o desafio que coloca o corpo e a alma à prova.

O comerciante Epitácio Junior, devoto de Nazaré, já encara a corda do Círio há 28 anos. Tudo começou quando o irmão mais novo precisou fazer uma cirurgia cardíaca e ele prometeu “que enquanto ela me desse força eu ia nessa procissão, nessa corda”, contou já com as primeiras lágrimas nos olhos. Um dos maiores símbolos da festa de Nazaré, a corda tem significado especial para muitos devotos, ela “simboliza tudo, não tem comparação com nada. As vezes as pessoas chegam lá sem condições de frequentar ela. Depois que toca nela (na corda), dá uma energia na pessoa que ela vai… a fé é tão forte que ela supera tudo”, explicou o fiel.

Fotos cedidas pelo entrevistado

Mesmo com todas as dificuldades para estarem ali, pessoas que nunca se viram antes, se apoiam e se ajudam a permanecer na corda, criando laços de fraternidade entre desconhecidos que compartilham a mesma experiência e emoção. Uma forma que os fieis têm de demonstrar respeito mútuo e entendendo que cada um tem uma relação especial com sua graça alcançada. Mas o que mantém tantas pessoas reunidas em meio a dificuldade? “Nenhuma explicação sabe explicar”.

Quem frequenta a procissão de domingo experimenta sensações que são difíceis de descrever, mesmo não sendo católico. Em meio ao calvário, umbilicalmente ligados à mãe pela corda, quando parece não haver mais forças para continuar, ouve-se ao longe, do alto, um grito de fé que invade os corpos e brada ao peito: “Nossa senhora, pode esperar, que a sua corda vai chegar”. Como uma injeção de adrenalina, a força da fé embalada pelo hino levanta os promesseiros que seguem sua jornada em direção ao altar.

“Essa energia de um que passa pro outro, porque às vezes a gente quer sair, aí o companheiro que tá na frente, ou que tá atrás da gente dá força pra gente, aí começa a cantar as músicas do Círio, de nossa senhora. Aquilo me emociona e me motiva muito. Da feita que a pessoa pega naquela corda, sobe uma energia na pessoa, que a pessoa, sei lá, é incomparável, não dá pra comparar nada”, contou emocionado.

Foto cedida pelo entrevistado

Nesses 28 anos de devoção, o comerciante lembra do momento mais tocante que ele vivenciou: o pagamento da promessa de um pai em favor da saúde do filho. “Ele fez uma promessa que a gente ia deixar a corda lá na Basílica. E pra chegar hoje em dia a corda na Basílica, a pessoa não consegue porque fica um cordão de guardas. E pra chegar lá a gente teve maior dificuldade. A gente conversou até com tenente, coronel do exército, a gente chegou a conversar, implorando pelo filho dele. Eu chamei ele (o comandante da guarda) e falei: pow senhor, a gente fez essa promessa assim, assim, assim, pra nós chegar lá pro rapaz pagar a promessa do filho dele. Aí foi que ele liberou. Nós éramos na faixa de uns seis, aí a gente chegou lá com um pedaço da corda, se ajoelhou na frente da igreja. Esse foi um dos melhores anos que eu já vivi assim nessa corda, foi chegar lá, se ajoelhar e agradecer pra ela”, lembrou Epitácio.

Uma expressão extremada de fé, a corda é também uma experiência humana e antropológica. Um dos mais importantes ícones do Círio, ela está guardada na história da procissão e de cada um dos romeiros que ano após ano seguem firmes com seus pedidos, promessas e agradecimentos. Em 2024 a tradição completa 139 anos e milhares de histórias de fé atreladas a ela.

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