Portal Jambu

Por Giullia Moreira

Criado em 2002 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), o Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento, em 21 de maio, incentiva o respeito à diversidade cultural e entende que os saberes, tradições e conhecimentos são fundamentais para a garantia dos direitos humanos em todo o mundo. Neste sentido, pode-se afirmar que a arte e seus inúmeros desdobramentos são poderosos instrumentos para a valorização de particularidades locais e podem fomentar discussões sobre a sociedade.

A ilustradora e quadrinista Tai Silva, mulher paraense e indígena, utiliza seus talentos e conhecimentos para trazer à população brasileira reflexões acerca da violência contra os povos indígenas e comunidades tradicionais, do machismo, da LGBTfobia, e outros temas sociopolíticos igualmente relevantes. Em sua entrevista para o Portal Jambu, Tai conta um pouco da sua trajetória, fala sobre carreira e projetos, além de discutir como o fazer artístico da Amazônia, feito por pessoas da região, deve ser mais valorizado. Confira:

 

Tai, vamos começar. Você pode dividir com a gente um pouco da tua história, desde a sua infância, primeiras influências culturais até a sua formação acadêmica?

Bom, fui criada principalmente pela minha mãe e por outras quatro mulheres, em Belém do Pará. Por ser filha de mãe solteira e que trabalhava fora por muitas horas, assistir TV e filmes em VHS foram grandes responsáveis pela minha formação cultural. Cresci com filmes da Disney e com séries como Batman e Meninas Super Poderosas e foi uma paixão sempre muito alimentada pela minha mãe, que também amava produções culturais de modo geral. Então música, audiovisual, dança e teatro sempre fizeram parte da minha vida.

Além disso, por passar bastante tempo sozinha, criar universos seja em desenhos ou brincando com bonecas me fizeram companhia por muitos anos, até eventualmente decidir que gostaria de estudar desenho e eventualmente trabalhar com isso. Na escola, eu decidi que queria fazer Bacharelado em Moda, porque tinha amigos que faziam e não tinha outras referências de cursos como Artes e Design. Na minha época pelo menos, os professores e orientadores sabiam muito pouco sobre essas profissões “diferenciadas”, então eles não foram capazes de me orientar propriamente. Mas no final, decidir estudar Moda foi muito interessante, já que dentro dela pude não só desenvolver desenho e criações mas entender meu processo como artista, entender sobre mercado e sobre comportamento e identidade, ensinamentos que trago no meu dia a dia.

Após a graduação tive de me mudar para São Paulo, já que queria continuar meus estudos e até hoje em Belém é muito difícil se desenvolver nessa área. Lá estudei na Sala Ilustrada, escola da Catarina Gushiken, a qual me possibilitou fazer uma imersão criativa e estudar de fato arte e desenho, além de ingressar no mestrado de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, onde dei continuidade às minhas pesquisar sobre moda, figurino e representatividade de gênero. Em São Paulo também tive a possibilidade de continuar a estudar desenho em escolas como Quanta e Plein Air, além de produzir meus primeiros trabalhos. Fiz muitas amizades as quais trato no coração até hoje e foi um dos primeiros momentos onde entendi que somos mais fortes criando e construindo em comunidade.

Tudo o que eu consumia artisticamente desde criança, até as vivências com a minha família que sempre foi muito engajada politicamente, me fizeram ser a artista que sou hoje. Minhas criações como ilustradora e quadrinistas estão intrinsecamente ligadas com diversas linguagens culturais e com a política, e elas me fizeram entender que viver e criar também são atos políticos.

 

Como foi que surgiu essa paixão pela ilustração? Ela está ligada ao mundo dos quadrinhos, no qual hoje você está completamente inserida?

Como eu falei anteriormente, eu sempre amei animações e desenhar era um modo de distração na minha infância. Então essa paixão inicial só se desenvolveu ao longo do tempo. Eu sempre gostei muito de estudar o que me interessava e sempre tive um foco muito grande quando eu me propunha a fazer algo, então comecei estudando por conta própria com livros que encontrava nas livrarias da cidade, até eventualmente poder estudar esses temas na faculdade e em espaços do governo como o Curro Velho e sigo fazendo cursos de aprimoramento até hoje.

Pra mim ilustrar é um modo importante de expressão pessoal e de possibilidades, onde podemos criar conexões e se sentir representado e acolhido nos espaços, além de ser se algo terapêutico também, e tento manter esse  lado dele até hoje mesmo trabalhando com isso.

Nos quadrinhos, algo que me interessava eram os personagens nas animações e filmes, porque os quadrinhos de super-heróis eram (e ainda são) muito machistas. Então minha primeira conexão com quadrinhos foi através da Turma da Mônica. Posteriormente, estudando mais essas relações de machismo dentro do meio dos quadrinhos e incentivada por amigos quadrinistas, que eu decidi começar a contar minhas próprias histórias. Porém minha relação de afeto nos quadrinhos é a escrita e as cores, confesso que morro de preguiça de desenhar e pensar na narrativa visual, porém adoro ilustrar para capas e campanhas.

 

Ilustração: Tai Silva

De que forma ser uma mulher do Norte, indígena, tem influência na sua arte e no seu trabalho?

Influência no modo como eu concebo meus desenhos, desenvolvo minhas pesquisas, escolho minhas cores, texturas e elementos. Tudo que é feito dentro do meu processo criativo tem fonte de nascimento no local ao qual eu pertenço e pelas relações que eu estabeleço. Mas acredito que para além da parte esteticamente agradável do meu trabalho, essa influência se transparece principalmente nas críticas que eu desenvolvo.

Crescer uma mulher paraense e amazônida, passar pelo processo de entender meu apagamento étnico e fazer o resgate dele, além de todos os preconceitos e lutas políticas que envolvem você se entender enquanto a um corpo racializado te faz nutrir um espírito de revolta e luta muito grande. E acredito que isso que move muito das minhas produções, principalmente nos quadrinhos. A gente passa uma vida toda pra aprender a se amar e valorizar nossa cultura e história e depois passa o resto dessa vida lutando para sermos escutados sobre nossas pautas enquanto continuando a ver nossos corpos e territórios sendo silenciados, ignorados, sexualizados e apropriados e praticamente sem ter a quem recorrer se não a nós mesmos, porque o próprio governo e empresas também contribuem para essa problemáticas. Mas precisamos seguir na nossa luta e usamos a arte para isso.

 

 

 

Vimos que você participa do MARPARÁ. Como estar dentro de uma rede de mulheres artistas te ajuda?

Um dos principais motivos pelos quais eu e outras artistas decidimos criar o MARPARÁ foi pela falta de visibilidade dentro do mercado paraense e também pela falta de apoio que muitas artistas compartilhavam ter. Vivemos em um sistema capitalista e patriarcal que incentiva a competição entre profissionais (especialmente entre mulheres e minorias sociais em geral) e com poucos espaços onde podemos nos ajudar.

Entender que crescemos mais e melhor em comunidade foi um pensamento fundamental para a criação da rede e poder ter um espaço com mulheres com suas múltiplas vivências, raças, idades, etc, torna a troca toda muito rica. Nesse espaço podemos tanto compartilhar lutas e nos apoiar nelas, como também tirar dúvidas, trocar dicas e estabelecer novos vínculos e amizades com outras profissionais da área. Além disso, como uma comunidade conseguimos nos destacar mais e fortalecer nossa voz quando entramos no mercado nacional, em razão disso diversas artistas foram encontradas por integrar a rede, isso fortalece a nós enquanto profissionais individualmente e em grupo, já que destaca que temos muitas artistas capacitadas e talentosas no Pará.

Foto: Arquivo Pessoal / Primeiro encontro do MARPARÁ

Você também é fundadora do “Quadrinistas Indígenas”, no Instagram, e percebi que há um objetivo do grupo de olhar para as narrativas gráficas de forma decolonial. A gente sabe que nas produções estrangeiras, o Brasil já é visto de uma forma totalmente equivocada, mas pouco se fala sobre como dentro do país os produtores culturais também olham para a Amazônia de uma forma muito preconceituosa. O que você pensa sobre isso? E de que forma o projeto subverte essa falta de conhecimento sobre a cultura indígena?

Como país temos diversos problemas, muitos deles vindo de um processo e pensamento colonizado, e uma das grandes características disso é que não temos o costume de saber sobre a nossa história. Temos uma educação colonializada que reforça estereótipos de todas as partes, prova disso é como muitas escolas ainda celebram o “Dia do Índio” (o qual atualmente se chama Dia dos Povos Indígenas) de modo extremamente racista e a completa falta de noção que muitas pessoas do centro, sul e do sudeste tem de pessoas do norte e nordeste. Não somos incentivados a conhecer a história do nosso país, entender sua diversidade e principalmente a buscar a nossa história individual, da nossa família, da cidade em que moramos, etc. Isso alimenta essa visão equivocada que o brasileiro tem.

Como Amazônia, nunca fomos anexados com respeito ao Brasil, pertencemos eternamente numa periferia, onde nossas vidas valem menos e somos constantemente explorados pelas regiões do centro, sul e sudeste. Por conta da visão desses territórios, passamos grande parte da nossa vida tendo vergonha de quem nós somos e acreditando que desenvolvimento só existe na parte de baixo do Brasil, o que é uma enorme falácia. Atualmente a Amazônia tem sido destaque em muitas mídias por conta da preservação da Amazônia, mas as pessoas parecem não entender que salvar a Amazônia é salvar a população que vive nela, é valorizar e buscar entender a relação que temos com o nosso bioma, e principalmente entender que nós somos os protagonistas dessa luta. O pensamento branco e colonial (e muitas vezes patriarcal) tem profunda dificuldade de se entender como aliado e buscam constantemente se colocar como nossos salvadores e não é isso o que queremos.

Não quero Netflix fazendo Cidade Invisível para divulgar a cultura da minha região e cosmovisões originárias, sendo que ela é produzida e protagonizada por atores brancos do sudeste. Quero a Netflix financiando produções amazônidas e indígenas que falem sobre isso. A gente não precisaria ter feito o protesto que fez na primeira temporada para que na segunda fossemos integrados a ela, se produtores entendessem que nossa cultura não é “cultura brasileira”, é cultura indígena. O capitalismo tem o péssimo hábito de se apropriar da cultura de diversos povos, enquanto o que queremos e precisamos é de espaço para nossas produções serem lidas, ouvidas e vistas. Eu não quero um quadrinista do sudeste escrevendo como é a minha vida como paraense, eu mesma posso escrever sobre isso.

Meus parentes (termo como pessoas indígenas se referem umas às outras) não querem quadrinhos falando sobre povos indígenas, sendo que temos quadrinistas indígenas lutando por espaço para que suas histórias sejam publicadas. É nítida a diferença de engajamento do público quando uma pessoa do sudeste/sul escreve sobre Amazônia/Povos Indígenas e divulga isso, e quando nós falamos sobre nós. Quando eu, Marcelo, Raquel e Mayra decidimos criar o coletivo foi exatamente pensando o quanto estamos exaustos de ver nossas cosmovisões vendidas como “folclore”, nossas representações imagéticas sendo sexualizadas ou genéricas, nossas narrativas sendo colocada de modos superficiais, e ainda assim, elas receberem prêmios e louvores, porque vendem uma Amazônia fantástica para branco ver, exotizar e bater palma.

Desse modo, o coletivo entende que temos muitos autores e ilustradores indígenas, mas poucos com acesso e formação as histórias em quadrinhos, então nós mesmos organizamos nossa formação com a ajuda de quadrinistas indígenas como a Benne e não-indígenas como Daniel Esteves, Cadu Simões, Levi Gama e Gidalti . Desse modo, planejamos ocupar esses espaços nos próximos eventos como CCXP e FIQ e contar as nossas vivências e modos de estar no mundo, entendendo que esses temas são diversos. Não existe um modo de ser indígena, a gente não precisa estar na aldeia para ser indígena, a gente pode falar sobre outros temas que não sejam violência e morte mesmo morando em uma aldeia que é alvo de empresários. Podemos contar qualquer história, de qualquer modo que a gente quiser. Isso é fundamental que as pessoas entendam, somos plurais e somente nós podemos contar nossas histórias, e assim acreditamos que conforme o público leia o que criamos, eles comecem a entender um pouco sobre a gente e das nossas lutas e assim quebrar essa visão racista que muitos possuem.

 

Foto: Arquivo Pessoal / Tai Silva e outros artistas na CCXP

Você esteve presente na CCXP do ano passado, como uma grande referência do meio artístico, e é colorista da HQ Death Hunt, do Stan Lee. Qual é a sensação de estar em um projeto como este?

É incrível. Fico muito grata por ter sido convidada pela equipe e sempre ressalto a importância da editora Sâmela Hidalgo nesse projeto. Ter uma editora amazonense, nortista, fez com que todo o processo de estruturação da HQ fosse pensado de modo respeitoso e com uma equipe formada majoritariamente por artistas nortistas. É uma hq que fala sobre Amazônia, que denuncia garimpo e genocídio indígena, e é de extrema importância que os artistas envolvidos nela sejam amazônidas e indígenas, e foi o que ela conseguiu fazer. É uma vitória não só para nós como autores, mas para nossa luta por visibilidade e por espaço. Então poder participar desse projeto me traz muito orgulho.

 

O que você planeja para seu futuro? Tem projetos pessoais, histórias que ainda quer contar?

Muitas coisas. No momento estou no desenvolvimento da continuação da HQ que lancei na CCXP (a “Causos de Visagens para Crianças Maluvidas”), junto com o meu amigo Nil Jorge e esperamos lançá-la até o final do ano. Além disso, o coletivo de Quadrinistas Indígenas têm duas publicações em andamento, fora um outro projeto que estou desenvolvendo com outras quadrinistas brasileiras. Além disso, estou tentando criar mais tempo para desenvolver minhas ilustrações autorais, focar mais nos meus processos como ilustradora e dentro disso pretendo também lançar uma coleção futuramente. Eu sempre tenho muitos planos e projetos em andamento, mas estou tentando alimentar o meu lado mais silencioso de criação e respiro dentro do caos que é essa vida dentro do capitalismo.

 

Você tem algum projeto favorito? Um trabalho que teve ou tem significado especial pra você?

Tenho vários, mas acho que os principais atualmente é a “Causos de Visagens para Crianças Maluvidas”, ela foi um projeto louco feito em um mês com o Nil, mas foi muito bom poder levar narrativas minhas e de outros parentes dentro dessa HQ e poder ver que muitas crianças se identificaram e que muitos adultos relembraram da infância lendo ela. Além dessa publicação, tem a Death Hunt, que foi meu primeiro trabalho grande como colorista, o qual é um caminho profissional que pretendo desenvolver mais, e a campanha feita para a Grendha com a comunidade de Juruti no Pará, o qual foi um trabalho de estamparia para coleção de sandálias Grendha Mais Rosa. Eu adoro poder misturar meu trabalho artístico com meu trabalho como ativista, então poder trazer minha cultura nas estampas e ainda apoiar campanhas sociais dentro da minha região me trazem muita alegria.

 

Quem são os quadrinistas e ilustradores que mais inspiram a sua arte?

Eu tenho tantas referências que admiro profundamente e sempre é difícil responder essa pergunta, mas vou destacar agora o Phil Noto, Ryan Andrews, Moon TRX, Dave Mckean, Polina Oshu e também aproveitar o espaço para divulgar artistas indígenas que eu adoro como a Benne Oliveira, Winny Tapajós, Tekpatl, Soni López-Chávez e Will Cavalcante.

Ilustração: Tai Silva

Sabemos que fazer arte na Amazônia é um desafio. O que você diria a uma artista paraense que acabou de iniciar sua trajetória? 

O caminho está em construção. Muitos vieram antes de mim e muitos virão depois. É importante ter foco, não desistir e buscar se integrar nos espaços artísticos e conhecer a galera. Tem muita gente legal produzindo e disposta a ajudar. Se você for mulher entra no MARPARÁ, se você quiser fazer quadrinhos se junte ao coletivo Açaí Pesado, conheça artistas e professores como Otoniel Oliveira, Volney Nazareno e Gidalti, escute e aprenda com eles. Segue a galera. Ter contatos e não ter medo, acho que são duas grandes habilidades que a gente precisa ter para conseguir caminhar, e além disso, estudar sempre. A luta é coletiva e a vitória também, tem espaço para todo mundo.

 

Se você tiver algo mais a acrescentar, fique à vontade. 

Queria usar esse espaço para divulgar os @ dos Quadrinistas Indígenas (@quadrinistasindigenas) e o da Associação Wyka Kwara (@associacaowykakwara), que é uma associação multiétnica que visa fortalecer os indígenas em contexto urbano e em retomada, é um espaço de fortalecimento étnico e espiritual e também de discussão acerca da nossa educação e cultura colonizada. E incentivar também a seguirem artistas, influencers e profissionais indígenas, vamos aprender a ir atrás de nos educar sobre as histórias dos povos originários e compartilhar isso com nossos amigos e familiares.

 

Não esqueça de conferir os projetos de Tai no Instagram @ixe_tai, e conheça também os trabalhos de outras artistas paraenses no site da loja MARPARÁ.  

 

Foto de Capa: Estácio Lab

O Portal Jambu é um espaço de jornalismo experimental com matérias produzidas por estudantes de graduação da Faculdade de Comunicação da UFPA sob a coordenação da Profa. Dra. Regina Lima e do jornalista Marcos Melo.

 

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