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Entrevista com Márcia Kambeba, por Kelvyn Gomes/Imagem: Acervo pessoal Marcia Kambeba

Desde o dia 14 de janeiro, representantes dos povos Tupinambá, Borari, Munduruku, Tembé ocupam a sede da Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc), para reivindicar o direito à educação a partir da manutenção de programação como Sistema de Organização Modular de Ensino, o SOME, e a valorização da educação indígena, dos profissionais e da estrutura das escolas que atendem ao sistema.

De acordo com os representantes indígenas, a nova proposta de reestruturação da administração pública estadual que conta com a reestruturação da Seduc afetaria diretamente as modalidades hoje ofertadas que, em muitos casos, são as únicas que atendem determinadas regiões do estado, principalmente aquelas mais distantes da capital. O grupo afirma que a proposta é substituir a educação presencial pela modalidade on-line.

Segundo a análise feita pelo Amazônia Vox, a Lei Orçamentária Anual (LOA) para 2025 apresenta uma redução de 85% no orçamento destinado à Educação Indígine no Pará. 

Para entender melhor sobre a educação indígena, os desafios enfrentados por professores e comunidades, e a urgência de políticas que valorizem a diversidade cultural como parte essencial da construção de um futuro sustentável, o Portal Jambu conversou com Márcia Kambeba, da aldeia Belém do Solimões, no Alto Solimões, no Amazonas.

Educação indígine, plural e coletiva

Para Márcia, a educação indígena transcende o aprendizado técnico ou formal. É um processo holístico, em que a transmissão de saberes ocorre no convívio comunitário e por meio da relação própria com a natureza. “Desde o nascimento, a criança é acolhida em práticas que envolvem espiritualidade e cuidado, como benzimentos, banhos de ervas e aplicação de grafismos. Essas práticas ensinam pertencimento, respeito e a conexão com o território”, explica a professora.

A transmissão de conhecimento nas aldeias acontece em um fluxo contínuo entre gerações. A oralidade é central no processo, com os mais velhos desempenhando o papel de mestres. “Aprendemos observando e convivendo. Somos ensinados a nadar, pescar, plantar e cultivar a terra, enquanto absorvemos os valores que regem nossa cosmologia: respeito à natureza, reciprocidade com rios, florestas e animais e a certeza de que tudo está interligado”, completa Márcia.

Escritora e ativista das causas indígenas, principalmente na área da educação e do combate à violência contra a mulher indígena, a autora que conta com mais de 11 livros publicados, reforça que a educação nas comunidades tradicionais é guiada pelos ciclos naturais. “As fases da lua, as estações e o comportamento dos animais regulam atividades como plantio, colheita e pesca. É um aprendizado dinâmico, que conecta espiritualidade, território e vivência”.

Imagem: acervo pessoal Marcia Kambeba

O papel da educação na preservação da cultura e da ancestralidade

Doutora em Linguística pela Universidade Federal do Pará, Márcia Kambeba destaca que um dos pontos centrais da educação indígena é o papel crucial que ela desempenha na preservação da língua, das tradições e da identidade cultural. “A oralidade é a base. Por meio das narrativas, aprendemos a cosmologia, as histórias de luta e resistência e os ensinamentos de vida do nosso povo”, afirma.

Desenvolvendo trabalho literomusical com canto e poesias autorais nas aldeias onde atua, ela destaca que a inclusão da língua indígena em escolas formais tem ajudado a manter vivas as tradições. “Quando as escolas adotam modelos bilíngues, ensinando na língua ancestral e no português, fortalecem o vínculo cultural das novas gerações, enquanto oferecem ferramentas para dialogar com o mundo externo”.

Márcia que atua como educadora pelo Programa de Apoio à Formação de Professores da Educação Básica, o Parfor, da Universidade do estado do Pará, diretamente em aldeias, capacitando professores indígenas destaca o papel desses educadores no processo de ensino aprendizagem desses grupos. “Esses educadores são mediadores culturais. Eles ensinam conteúdos formais, mas também são responsáveis por traduzir e preservar nossos saberes tradicionais, sem que a educação formal contradiga os valores locais”, esclarece.

Preconceito, desvalorização e falta de estrutura: os desafios da educação indígena no Pará

Embora a educação formal nas aldeias tenha avançado, os desafios são muitos. Márcia chama atenção para questões como o preconceito contra professores indígenas, a desvalorização das línguas ancestrais e a falta de políticas públicas consistentes. “Ainda vivemos em um contexto de ‘governo da língua’, onde o português predomina como língua oficial, e as línguas indígenas são marginalizadas. Isso impacta diretamente a preservação cultural e a autoestima das comunidades. Precisamos de currículos que dialoguem com nossas tradições e cosmologias, mas o modelo formal ainda privilegia uma visão ocidental e urbana”, aponta a professora indígena.

Uma das pautas abordadas pelo Sindicato dos Professores do Estado do Pará (Sintep), que se juntou recentemente a mobilização indígena na Seduc, também é destacado por Márcia: a falta de reconhecimento profissional dos educadores indígenas. “Muitas vezes, acumulamos funções. Somos professores, mediadores culturais e responsáveis por transmitir saberes tradicionais. Tudo isso com baixos salários e pouco apoio pedagógico”. Ela também ressalta a importância de programas específicos para formação continuada, que respeitem as realidades das aldeias. “O ensino formal precisa ser flexível para se alinhar às dinâmicas da vida comunitária, como rituais, plantios e caçadas.”

Críticas ao cenário atual

Márcia critica duramente a recente aprovação da Lei 10.820/24, no Pará, que ela considera um retrocesso para a educação indígena. Para ela, a luta pela educação indígena é também uma luta pela preservação da Amazônia e pela justiça social. “Enquanto o governador Helder Barbalho se prepara para a COP 30, é inaceitável que ele feche as portas para o diálogo com os povos indígenas, principais aliados na luta climática. Não há sustentabilidade sem justiça social e respeito à diversidade cultural. Não há futuro sustentável sem reconhecer os direitos e saberes dos povos originários. A nossa luta não é só por nós. É pela Amazônia, pela cultura, pela vida. A resistência é contínua. Resistimos ontem, resistimos hoje e resistiremos amanhã. A educação indígena é um ato de resistência, pertencimento e esperança”, conclui Márcia.

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