
Por Kelvyn Gomes/Imagem: Divulgação
Um projeto de design autoral tem ressignificado tradições ancestrais da carpintaria naval amazônica em Abaetetuba. O projeto transforma madeiras de embarcações descartadas em mobiliários e objetos de arte com forte carga simbólica, histórica e afetiva. O Portal Jambu conversou com o idealizador e coordenador do projeto, o ativista indígena Marcelo Vaz, para conhecer mais sobre a iniciativa.
A vivência com os mestres carpinteiros levou Marcelo a iniciar, em 2016, um processo de pesquisa em estaleiros da cidade. A ideia era reaproveitar a madeira das embarcações inutilizadas aplicando técnicas tradicionais da carpintaria naval amazônica.”Cresci imerso nos ambientes de estaleiro e rios, influenciado pelo meu pai, Lúcio Lopes, que foi calafate, abridor de letras e marítimo. Esse universo sempre foi inspirador”, conta Marcelo.
Com o Edital Preamar de Cultura e Arte, da Secult, Marcelo pôde dar corpo à I Mostra Design das Águas, realizada em 2022. “O projeto nasceu nos estaleiros e tem a comunidade da carpintaria amazônica como inspiração e executora das peças e eventos realizados”, explica Marcelo.
As peças expostas foram fabricadas a partir das técnicas dos próprios mestres, respeitando seus modos de fazer e ativando saberes muitas vezes invisibilizados. Além de dar vida aos materiais que antes eram descartados. “Por muitos anos, o destino dessa madeira era queimada nos fornos de padarias. Hoje fico feliz de ver que ela tem um novo destino. Ficamos felizes em apoiar iss”, diz Mestre Cuca, um dos artesãos envolvidos.

O projeto também tem contrapartidas socioeconômicas. Parte da renda da venda dos objetos é destinada aos mestres; outra parte mantém uma programação sociocultural contínua na comunidade, com exposições, colóquios, palestras e produções audiovisuais. Mas os resultados vão além do retorno econômico. “Os estaleiros hoje recebem visitas guiadas, compartilham sua tradição e seu imaginário amazônico. Os mestres transitam do fazer tradicional ao contar suas histórias, ocupando espaços acadêmicos, discutindo suas perspectivas e o futuro da sua propriedade cultural”, afirma o idealizador da ação.
Os objetos produzidos fizeram parte de uma mostra que reuniu diversos aertifices da carpintaria da região de Abaetetuba. Segundo Marcelo, realizar a Mostra foi uma resposta direta aos enfrentamentos que as comunidades ribeirinhas vivem. “Desde 2016, cabocos no interior elaborando móveis de design autoral com sustentabilidade e responsabilidade social. Até então, era inédito, e ainda é desafiador”, explicou.
Apesar da falta de apoio institucional no início, a persistência rendeu frutos. “Confesso que não tínhamos a real visão da transformação que isso causaria em nós e no cenário criativo regional”.
A I Mostra Design das Águas também impulsionou a inauguração da CABANA Galeria, primeira galeria de arte de Abaetetuba, uma demanda da própria comunidade. “E como diz o patriarca Lúcio Lopes: deveríamos reunir todos num lugar, pra ouvir todos juntos e todos saberem, porque isso é muito importante, é lindo demais”, lembra Marcelo.
Isso mostra a importância dos movimentos periféricos como expressão legítima e emergente das linguagens culturais”, afirma o artista.
E os artesãos não param. A II Mostra, já em fase de preparação, deve aprofundar ainda mais esse processo com o lançamento do livro “Carpintaria das Águas” que reunirá resultados das vivências dos participantes. A nova etapa do projeto busca registrar, salvaguardar e dar continuidade à memória dos que fazem da carpintaria amazônica uma arte viva. “É muito legal ver essas iniciativas sendo representadas por quem vive a realidade”, resume Mestre Nenê.