O dia 21 de janeiro, no Brasil, é comemorado como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, como uma forma de reconhecer, valorizar e discutir a diversidade das manifestações religiosas no país. O dia, criado em 2007, a partir da Lei n° 11.635/2007, faz referência ao caso da Iyalorixá conhecida como Mãe Gilda de Ogum que teve uma foto sua usada pelo jornal Folha Universal em uma matéria que criminalizava a atuação de líderes religiosos vinculados ao Candomblé. Em alusão a este dia, o Portal Jambu te leva para conhecer um pouco das raízes do Brasil a partir da cozinha dos santos. Vem com a gente numa breve viagem sobre a história negra do Brasil.
Por Kelvyn Gomes/Imagem: Governo da Bahia
Como parte desta história se constrói
Na escola, ainda muito criança, aprendemos que a religiosidade brasileira atual é fruto de um “sincretismo religioso” que nossos professores costumavam definir como uma mistura das religiões africanas e católica em que os povos africanos trazidos para cá passaram a venerar santos católicos em referência às suas divindades, orixás e outras manifestações espirituais. Essa explicação, por si só, não é, obviamente, suficiente para dar conta da complexidade e da diversidade do que é a religiosidade no Brasil, um verdadeiro mosaico cultural.
No geral, a colonização foi impositiva, violenta e explicações como esta tendem a amenizar esse processo que foi, pelo menos para alguns grupos, extremamente doloroso. Trazidos nos Tumbeiros (navios negreiros), em uma viagem que podia durar de dois há muitos meses dependendo das condições de navegação, sofriam toda sorte de abusos, já que as condições às quais esses povos eram submetidos, desfigurava qualqier feição de humanidade: sofriam fome, tortura, doenças e ao menos ¼ não conseguia concluir a viagem.
Não apenas seus corpos, como objetos, eram trazidos às terras ocidentais. Como uma forma de resistir e existir dentro deste processo violento, traziam consigo sua cultura alimentar, hábitos e costumes, histórias, conhecimento e religiosidade. Um panteão religioso já que, ao contrário do que o pensamento imperialista concretizou, esses povos vinham de inúmeras nações de um gigantesco continente que foi unificado como o lugar África.
Foram nesses navios que chegaram ao Brasil manifestações como a Umbanda, o Candomblé, o Tambor de Mina, o Xangô e o Batuque Gaúcho, para ficarmos em alguns exemplos. Proibidos de exercer suas religiões, encontraram no sincretismo uma possibilidade de vivenciá-las, mesmo que de uma forma “não oficial”, mas ainda sim, muito real.
Como herança da escravidão atlântica, as pessoas, no geral, tendem a recusar a presença e a desrespeitar a existência destas religiões e suas manifestações, demonizando-as, criminalizando-as e violando-as. No entanto, a presença da cultura africana no Brasil está nas nossas raízes, no nosso DNA, está no nosso cotidiano e onde talvez nem percebamos.
Comida de santo não é só comida
A diversidade religiosa brasileira se manifesta também na nossa cultura alimentar. A comida desempenha um papel fundamental no Candomblé, por exemplo. Pesquisadores brasileiros destacam que ela se configura como uma das marcas mais representativas da cultura africana, funcionando como um elo de comunicação entre os homens, os Orixás, aos antepassados e a natureza. No universo do Candomblé, a alimentação não é apenas um ato físico, mas um ato sagrado e simbólico, com uma forte carga espiritual e ritualística.
Um dos principais rituais envolvendo a comida no Candomblé é o “olubajé”, uma cerimônia aberta em que os alimentos são servidos de forma hierárquica, com cada prato colocado em folhas de mamona e saboreado a ritualística que pede a tradição. Cada divindade tem suas próprias restrições alimentares, que vão desde a escolha de tipos específicos de peixe até a exclusão de certos ingredientes, como o caranguejo ou a carne de porco: Iansã: por exemplo, não consome caranguejo ou abóbora, enquanto Oxum rejeita o peixe sem escamas e o tubarão.
Essas regras alimentares não são apenas práticas de respeito aos Orixás, mas também são carregadas de simbologias e segredos que permeiam a tradição oral do Candomblé. A preservação de certos conhecimentos e preceitos alimentares é uma estratégia que integra o grupo. A comida, nesse sentido, se torna um veículo poderoso para fortalecer a união entre os membros da comunidade, como ocorre no ato de “comer junto”, onde a partilha do alimento aumenta o “axé” — a energia vital que circula entre todos.
Se atentar e respeitar essas regras também está ligada à prática de evitar a “quizila”, um termo que se refere ao descuido ou transgressão das normas do Orixá, o que pode prejudicar o praticante de Candomblé e sua conexão espiritual.
A diversidade de práticas alimentares entre os diversos Orixás, assim como as simbologias associadas aos alimentos, reflete a riqueza da tradição afro-brasileira, que se articula por meio de rituais, cânticos e um profundo respeito aos elementos da natureza. No Candomblé, a comida é muito mais do que alimento para o corpo, ela é uma forte ligação entre o sagrado e o humano, onde cada refeição é uma expressão de devoção e aprendizado espiritual.