SÉRIE ESPECIAL ANIVERSÁRIO DE BELÉM
No terceiro e último episódio da série especial do Portal Jambu sobre o aniversário de Belém, vamos conhecer um pouco sobre esse que é um símbolo da cultura e da identidade belense, que deixa marcas na história e no cotidiano da cidade: a chuva.
Em Belém existem duas estações no ano: uma que chove todo dia e outra que chove o dia todo, também definidas como “inverno” e “verão” amazônico, marcadas não pelas diferenças extremas na temperatura, mas pelo regime das chuvas na região. Agora, por exemplo, quando da publicação deste material, vivemos o período invernoso, que vai do final de novembro até o final de março, mais ou menos. Para entender um pouco mais da relação da chuva, com os moradores e a cidade, conversamos com o professor e pesquisador Kelvyn Gomes,especialista na área de História Ambiental e tem desenvolvido seu trabalho em torno deste tema.
Por Regina Lima/Imagem: Antar Rohit – reprodução internet
Corre que lá vem ela!
A música da paraense Dona Onete, anuncia os presságios de chuva, isso porque os urubus, aves comuns na cidade, marcam principalmente os arredores do Mercado do Ver-o-Peso, “aproveitam as trocas de ar quente e frio durante a formação das chuvas para levantar voo planando no ar graças aos bolsões de ar quente que sobem em direção aos céus. Daí, ventos fortes, nuvens escuras e os primeiros respingos no telhado confirmam o que está por vir”, comenta o historiador. Então corre que lá vem ela, tira a roupa do varal, pega a sombrinha e avisa que tu só vais sair depois da chuva.
Pintou um clima diferenciado
O professor também argumenta que a chuva é uma característica da cidade de Belém que influencia diretamente na cultura e na identidade do munícipe. “Dessa forma, a chuva se torna não apenas uma característica climática, mas social”. Estudos meteorológicos recentes, por exemplo, confirmam o que há muito vem sendo observado por moradores da capital paraense, viajantes e estudiosos. Enquanto que estudos sócio históricos identificam como esta interação tem se dado.
Desde o século XVIII o fluxo de pessoal estrangeiro na capital foi se intensificando e, dentre eles, muitos viajantes naturalistas em missões de observação e reconhecimento deste território considerado por eles como exótico, vasto, de riquezas inesgotáveis, um verdadeiro Éden perdido na terra.
Esses observadores registraram que aqui, em Belém, diferente de outras localidades ao longo do Vale Amazônico, a chuva era mais abundante, aponta o pesquisador. “Foram, por exemplo, viajantes como Henry Bates e Alfred Wallace que ajudaram a concretizar a ideia da chuva com hora marcada, a chuva da tarde, ao registrar os hábitos e práticas da população em relação ao fenômeno da natureza”, explica Kelvy Gomes.
Mas o que mais lhes impressionava, já que estavam, em sua maioria, acostumados ao clima dos trópicos, com estações do ano bem delimitadas e temperaturas que variam do zero aos 35º de acordo com a estação, era a abundante quantidade de chuva que experimentaram na capital do Pará, variando, apenas, sua periodicidade e constância, podendo durar dias seguidos. Séculos depois, estudos meteorológicos, como o da Universidade Federal da Paraíba, confirmaram o que o belenense já sabia: definitivamente esta é a cidade mais chuvosa do Brasil.
“Isso acontece porque a cidade está ilhada climatologicamente no estuário amazônico, como observou Antônio Ladislau Monteiro Baena. Belém vive sob a influência de zonas de convecção que permitem a formação e o acúmulo de nuvens na região, uma característica físico climática que permite que possua altos índices pluviométricos e chuvas ao longo de todo o ano”, comenta o historiador.
Sua presença é tão marcante que a dinâmica da cidade podia, como ainda hoje, girar em torno dela. No período de chuvas havia a dificuldade ao acesso e a escassez de determinados produtos por conta da sua sazonalidade, por outro lado as águas vindas dos céus garantiam a cheia dos rios e o alcance dos barcos e navios a determinados lugares mais distantes e de difícil acesso.
“As vestes também ajudavam a identificar o período chuvoso, as casacas e galochas emborrachadas para proteger da chuva apareciam nos anúncios de jornais, nas vitrines das lojas e desfilavam pelas ruas da cidade, bem ao estilo inglês. Mas nada mais marcante do que os guarda-chuvas que nos protegem da chuva e do sol”, lembra Kelvyn.
Dias de chuva, dias (in)gloriosos
Mas a chuva ficou marcada também pelo discurso político-científico que para fugir das irresponsabilidades administrativas legou a ela os males enfrentados pela população urbana. “Dias de chuva, na Belém de Antônio Lemos, podiam ser dias de sufoco. Ruas alagadas, enlameadas, canais transbordando, ela foi culpada até de disseminar doenças. Por outro lado, a benfazeja chuva aliviava o calor equatorial e insalubre permitindo que esta petit Paris amazônica fosse habitável, diria o discurso cientificista da época”, explica o historiador que defendeu sua dissertação de mestrado a partir da análise destas relações.
Mesmo fazendo parte do cotidiano da cidade desde muito tempo, parece que ainda hoje não aprendemos a conviver com ela. “Aterramos igarapés, jogamos lixo nas ruas, construímos parques lineares sobre córregos e canais, nos instalamos, seja por necessidade ou opção, em lugares alagadiços, impermeabilizamos o solo e, quando chega a época dela, a culpamos pelos problemas que nós mesmos criamos”, alerta o pesquisador relacionando os problemas urbanos a questões históricas e sociais.
Qual o lugar da chuva na Belém da COP 30?
Em 2025 Belém, no auge dos seus 409 anos, receberá o maior evento sobre questões climáticas do mundo: a Conferência das Partes que reúne líderes mundiais e da sociedade civil para discutir a questão das mudanças climáticas e dos direitos sociais relacionados à elas. A COP será realizada no período mais seco, de calor, em uma cidade que parece pouco ter se adaptado à sua natureza. Ao contrário, se desagregou dela. “A Belém da COP, até aqui, parece percorrer os mesmos descaminho de uma Belém fáustica de outrora, deixando de lado o sol, a chuva, os rios, os animais e as pessoas da cidade”, afirma enfaticamente, o professor.