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Quantas histórias cabem em uma multidão? No último domingo, 13 de outubro, o Círio de Nossa Senhora de Nazaré que acontece em Belém do Pará no segundo domingo de outubro levou mais de dois milhões de pessoas às ruas da capital paraense em sua 232ª edição. Ainda que absolutos, esses números não seriam capazes de refletir a complexidade que é o Círio. Essas mais de duas milhões de histórias estão conectadas a outras milhares. No último episódio da série especial do Portal Jambu sobre o Círio de Nazaré, trazemos histórias de fé refletidas em promessas pagas durante as procissões do sábado e do domingo.

Por Kelvyn Gomes/Foto: Kelvyn Gomes

Um mar de gente

Cada uma das mais de três milhões de pessoas que foram às ruas de Belém no último final de semana são uma gota num enorme mar de gente. Sem elas, não haveria Círio. Sem sua devoção, sem sua força, sua energia, seu clamor, os pedidos, os agradecimentos, a fé. A devoção a Nossa Senhora de Nazaré, iniciada no Pará ainda no século XVIII, transformou em tradição uma festa que é feita pelo povo, pelas suas histórias e pela relação que cada um estabelece com a virgem santa.

Cada peregrino, vindo de um bairro, cidade, estado ou país distante, é invadido pela emoção de estar ali, diante da fé que deposita na crença de um bem-estar, da melhora, seja sua ou de outrem. A fé, depositada, ou sinônimo de crença, da crença que algo é possível, passível de transformação, mobiliza corpos e energias que transformam desejos em promessas, que impulsiona forças quase que sobre humanas para cumpri-las.

Quanto maior a graça, quanto maior o desejo, quanto maior a necessidade, maior a dor. As promessas parecem caminhar de acordo com os desejos, as necessidades, da casa própria, do carro novo, o bem-estar de um bichinho de estimação, a saúde – sua, ou de um ente querido. Um objeto de cera simbolizando um membro ou parte do corpo, uma casinha de miriti, madeira, isopor, um tijolo, uma boneca, um livro, as mãos na corda de fibra ou os joelhos no chão.

Fotos: Karina Gomes; Júlio Augusto, Vitória Ferreira

Quantas histórias cabem em uma multidão?

Era pouco mais de sete da noite do sábado, 12 de outubro, quando encontramos Izabel Monteiro. A jovem estava molhada, uma breve chuva havia marcado a Procissão das Luzes, ou Trasladação, que leva a imagem peregrina do Colégio Gentil Bittencourt até a Catedral da Sé. Izabel carregava na cabeça uma casinha feita de cera. Ela estava ali para agradecer a conquista da sua casa própria, mas também para pedir. A promesseira confidenciou que, debaixo da casinha, havia um seio, também de cera, ela acabara de descobrir um nódulo mamário e ainda sequer tinha contado a família. Izabel estava ali, como uma filha, em clamor para que a mãe Maria lhe guardasse, garantisse sua saúde.

“Embaixo daqui da minha casinha, tem uma mama, direito, que eu ainda não contei pra minha família, mas eu tô com um nódulo na mama, e aí é por isso que eu vim pedir pra ela, interseção, pra que ela me cure, e suma esse nódulo e que não seja nada. Por isso que eu vim pedir pra nossa senhora, porque eu sempre fui a menina de nossa senhora, então eu sou uma filha, eu só tô pedindo colo pra ela, é só o que eu quero”.

Foto: Júlio Augusto

Mais tarde, já na madrugada de domingo, na subida da Avenida Presidente Vargas, nós encontramos Tiffany, uma jovem mãe, que amparada pelo marido e amigos, carregava presa ao peito uma boneca, negra como ela. A romeira que, de joelhos, subia a avenida íngreme que em dias comuns é marcada pelo trânsito intenso, contou que sua promessa era pela saúde da filha que havia acabado de completar um ano de idade.

“Minha bebe nasceu de seis meses e eu fiquei dois meses internada pra tentar segurar ela, pra mim não perder. Quando ela nasceu de seis meses falaram que ela poderia não sobreviver. Ali eu me peguei com nossa senhora, com Deus. Falei que se eles tirassem ela dali, eu vinha de joelhos por ela. E com 25 dias ela saiu, não precisou ficar na UTI, não precisou ficar na incubadora. Ela fez um ano e hoje ela tá forte, graças a Deus e nossa senhora”.

Foto: Kelvyn Gomes

Outros como Tiffany pagam suas promessas de joelho. Alguns seguem seu caminho com apoio de familiares e amigos, outros formam grupos e seguem a peregrinação juntos, há ainda aqueles que nunca antes se viram, mas se encontraram na fé. Seus grupos se juntam, se organizam e os apoiam. Ao contrário, o que é incomum, é encontrar alguém sozinho, como no caso de Carlos. Morador de São Caetano de Odivelas, sem condições de trazer a família junto, ele estava ali, na mesma Presidente Vargas, o sol ainda nem havia raiado, com pedaços de espumas no joelho para amenizar a dor e apoiado em cabos de vassouras. Não era a primeira vez de Carlos, ele estava ali para mais uma etapa de sua promessa.

Foto: Kelvyn Gomes

Há ainda romeiros que optam por cumprir suas promessas puxando a corda atrelada à berlinda, onde vai a imagem peregrina. A corda, conta a história, foi aderida ao Círio no século XIX quando após um alagamento na região da feira do Ver o Peso, romeiros feirantes decidiram atrelar uma corda para desatolar o carro que trazia a imagem de Nazaré. De lá para cá, a corda passou por transformações e se transformou em um dos maiores símbolos da fé em Maria e do Círio.

A corda do Círio é reconhecida pelos promesseiros como uma das mais difíceis formas de cumprir uma promessa. Seu espaço é disputado, alguns romeiros sequer a alcançam, seguem seu caminho nos arredores, imprensados e sustentados uns pelos outros. O clima quente e úmido da cidade também não os favorece. Estar ali é tão difícil que levar um pedaço da corda é como um prêmio ou atestado da sua vitória.

Há pelo menos três décadas o grupo formado por Rubens encabeça a missão de puxar a corda da Berlinda. Rubens foi o primeiro. Com o tempo, ele foi fazendo amizade com outros promesseiros até que formassem um grupo. Hoje, com quase 70 pessoas, o grupo participa do traslado no sábado, também na corda, e após o encerramento da procissão já se reúne no “Núcleo”, primeira estação ou cabeça da corda, como era conhecida anteriormente para esperar a procissão do domingo. Para Rubens, essa é a missão deles.

“Nós estamos aqui com fé, nós trazemos a Nossa Senhora de Nazaré, praticamente, na Trasladação. E praticamente nós voltamos daqui pra pegar a estação pra levar também a Nossa Senhora de Nazaré. E é muita fé que a gente tem, muita emoção, e é inexplicável pra gente falar o que Maria significa pra gente. Então só falar que eu tenho fé em Deus, em Nossa Senhora de Nazaré que ela nos proteja que a gente chegue com a corda dela até a Basílica”.

Foto: Kelvyn Gomes

Mas, afinal de contas, o que te trouxe aqui?

Fiéis de todas as idades, histórias tão diversas quanto cada um que ali estava. O mar de gente nunca se homogeneiza. Cada história, ainda que pessoal, não é única, elas estão entrelaçadas e ancoradas em objetivos, ainda que pessoais, fazem parte de um todo, estão ligados pela fé. É impossível olhar para aquela multidão e não imaginar suas histórias, suas dificuldades, seus caminhos e no final das contas se perguntar: o que te trouxe aqui?

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