Marcos Melo e Giullia Moreira | Foto: Aryanne Almeida
“(A cerâmica) começou na família com a minha avó, Fernanda. Ela foi pra Icoaraci na década de setenta. Antes ela morava no centro da cidade e trabalhava como lavadeira. E aí quando ela foi pra Icoaraci, lá era como se fosse um sítio gigante e já não tinha mais como ela trabalhar porque não tinha essa demanda de mercado. E aí ela começou a trabalhar com o que o bairro tradicionalmente trabalhava aqui, que era cerâmica”, é assim que Maynara Sant’ana conta, de maneira saudosa, sobre o início da relação de sua família com a cerâmica em Icoaraci, Distrito de Belém, no Pará.
Hoje, cerca de 50 anos depois, a Família Sant’ana dá nome a um negócio que une os laços familiares, os traços regionais, a cerâmica de Icoaraci e a capacidade de pensar ancestralidade aliada à inovação. “Não existe a cerâmica que a gente produz se não for em família. A gente até brinca que são os quatro elementos, cada um representa uma força dentro do nosso trabalho, e se um de nós não estiver, com certeza a cara da Cerâmica Família Sant’ana do jeito que ela é hoje não existiria. Então, trabalhar em família, pra gente é vital”, acrescenta.
Florescendo no decorrer dos últimos anos e ganhando impulso com a chegada da COP 30, que será realizada em Belém, em 2025, o empreendedorismo é uma realidade para a população paraense. Com uma vasta gama de possibilidades de inovação e uma riqueza cultural diversa, o Pará tornou-se uma potência para novos negócios e o desenvolvimento de ideias. Seja pela busca por uma nova fonte de renda, pela realização de projetos pessoais ou outros motivos, os empreendimentos impactam positivamente a vida de milhares de cidadãos. Somente em 2022, de acordo com o Atlas dos Pequenos Negócios, material produzido pelo Sebrae, cerca de R$ 35 bilhões mensais foram movimentados pelos empreendedores brasileiros.
“Nós temos um estado gigantesco, com grande vocação para a produção mineral e agronegócio, mas grande parte da nossa riqueza é gerada no setor terciário, que é composto pelo comércio e prestação de serviços. E isto em parte se deve ao trabalho dos micro e pequenos empreendedores – o vendedor de frutas, a cabeleireira, o comerciante de bairro. Essas pessoas geram empregos, fazem a economia girar e ajudam o Pará a crescer graças a sua visão, inovação e esforço”, afirma Hana Ghassan, vice-governadora do estado do Pará. Hana ressalta também a importância das mulheres que, como Mayara, têm assumido um papel muito importante à frente de seus negócios.
Segundo o relatório da Global Entrepreneurship Monitor (GEM) de 2022, feito pelo Sebrae e pela Associação Nacional de Estudos em Empreendedorismo e Gestão de Pequenas Empresas (Anegepe), quase 70% dos brasileiros já se relacionam com o empreendedorismo de alguma forma. Na prática, essa porcentagem representa 93 milhões de cidadãos que já trabalham com novos negócios ou possuem interesse em empreender.
A análise de experiências pessoais, de entender as necessidades locais e enxergar nuances diferenciadas para o mercado são algumas das características que fazem um novo negócio ter mais chances de sucesso. No caso de produtores culturais e artistas como a jovem Rawi, de 24 anos, ver a si mesma como um talento a ser ampliado e valorizado é também um modo de transformar a cultura em um produto mercadológico, sem que seja necessário haver a perda do fazer e da sensibilidade artística.
“Acho que alinhar o artista criador de sua arte e o artista que gerencia o seu fazer artístico me parece complicado às vezes, sabe? Sendo um artista independente, você precisa se desdobrar em mil, mesmo com uma equipe incrível. Eu aprecio, realmente gosto de mergulhar no processo artístico de cada etapa do meu trabalho criativo e ainda assim preciso ser o empresário da minha própria carreira, me divulgar, me comunicar com parceiros, etc. Isso como qualquer outro artista independente ou profissional de diversas áreas”, afirma a artista queer, nascida e criada na cidade de Santarém, oeste do estado do Pará.
Empreendedorismo e cultura: uma união frutífera na Amazônia
“A vida de fazer arte é sempre complexa. Quando você é (um artista) independente, do interior, LGBTQIAPN+, e sem grana, tudo é bem diferente. Fazer arte é muito investimento e, às vezes, ganhar apenas para investir”, afirma Rawi.
“Rawi nasce de uma inquietação na minha infância, uma necessidade por novidade e ação, como boa geminiana buscando novas proposições de si. Rawi me veio como essa luz que me acompanha na minha vida artística profissional. Rawi ultrapassou as barreiras de meu nome artístico. Hoje em dia agrupa sentidos mais densos, é realmente meu nome, meu escape, meu nome escolhido, é quem acolhe a metamorfose que sou e também por ser uma pessoa não-binária, sinto que Rawi nasceu mesmo que sem eu entender, nesse contexto de não me reconhecer nos limites que haviam me dado”, acrescenta.
Artista revelação do Prêmio Amazônia de Música, em 2023, Rawi possui uma história com a produção cultural que já dura mais de 10 anos. Das artes plásticas à música e ao teatro, a multiartista se destaca como uma produtora cultural que acredita na diversidade cultural da Amazônia como um potencial a ser exportado, enquanto produto de consumo e de excelência artística, e não apenas como uma arte nichada para as cidades da Região Norte.
“O processo de enxergar o fazer artístico como negócio sempre foi bem claro na minha mente, mas a realidade é muito mais difícil de se dobrar. Existe um consenso de que fazer arte é apenas hobby ou algo passageiro, ou uma atividade secundária e que não gera renda. Isso é martelado em nossa mente e, é claro, nosso contexto interiorano reforça isso. Não temos teatro ou aparelhos que geram movimentação constante do fazer artístico na cidade, tão pouco cursos técnicos ou cursos de graduação voltados às artes, mas quando paramos pra pensar de fato, o profissional da arte está em todo lugar. Em tudo que vemos, tocamos e ouvimos, tem o dedo de algum artista”, destaca a cantora.
Conforme informações apresentadas pelo Observatório Itaú Cultural, em 2020, a economia criativa e das indústrias criativas movimentou 3,11% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil. Dois anos depois, em 2022, o setor gerou mais de 7 milhões de empregos formais e informais no país. Esses números revelam a importância da cultura na geração de renda e mostram, paralelamente, a arte como um nicho de mercado com grande potencial a ser explorado.
O setor cultural no Brasil, e mais especificamente na Região Norte, sempre apresentou grandes desafios. Um dos principais problemas foi a falta de acesso a recursos para realização de grandes projetos. Essa realidade também vem sendo questionada pelo setor na Região, que tem se fortalecido cada vez mais.
Aprovadas em 2023, duas novas políticas nacionais – as Leis Paulo Gustavo em Aldir Blanc – vão movimentar R$ 6 bilhões de reais no Brasil, investindo em projetos de diferentes tamanhos. Para acessar esses recursos, muitos artistas têm se formalizado com a criação de MEIs ou de Empresas de Pequeno Porte, o que fortalece ainda mais o setor cultural e profissionaliza o fazer artístico.
“Tenho minha MEI, tenho uma equipe de mais de 10 pessoas trabalhando em vários projetos paralelos, disco, shows para festivais, videoclipes, etc. Seria difícil não me colocar nesse lugar do empreender artístico. É claro que nem todo mundo enxerga assim, muitos não entendem como uma profissão de carreira, ou ainda nos enxergam como jovens apenas fazendo arte. Acho que cada vez mais chegamos a lugares que provam que nosso trabalho parte de um pensamento de que somos trabalhadores da arte”, acrescenta Rawi.
Impactos e transformações sociais do empreendedorismo nortista
“A cerâmica em Icoaraci tem uma tradição centenária, tem mais de cem anos. E aí a minha avó foi trabalhar na Olaria do ‘seu Zé Espanhol’, que é a mais antiga do bairro em atividade ainda hoje. Eles têm cento e vinte anos de existência. E ela foi trabalhar como brunideira. Brunideira é quem dá brilho nas peças, né? E aí ela teve seis filhos, e dos seis filhos, quatro foram para o artesanato e dois para a cerâmica. Mas o meu pai foi o único que levou o ofício com mais profundidade. Hoje ele é mestre e esse ano ele completa cinquenta anos trabalhando com cerâmica. A minha mãe, que é casada com ele, trabalha há quarenta anos com finalização de peça. E aí, em 2016 a gente começou a trabalhar juntos em família. Eu sou formada em nutrição, sou filha deles, e em 2016 eu conheci quem hoje é o meu marido Heitor Sebastian”, detalha Maynara, sobre a formação da Cerâmica Família Sant’ana.
Atualmente, o negócio da família Sant’ana continua se expandindo e já conta com outros colaboradores. Baseados no princípio de que a arte da cerâmica de Icoaraci sempre foi muito segmentada – ou seja, sempre foi um trabalho que exige várias pessoas no processo de produção das peças -, a família procura sempre adicionar novos trabalhadores ao empreendimento. Um processo padrão de criação das cerâmicas passam pelas mãos do boleiro, do oleiro, da queima da cerâmica, da pintura, do desenho, da finalização, e assim por diante.
Consoante ao que relata Maynara, uma peça, em média, leva de três a oito etapas para a sua conclusão. “Então a gente tem três pintores, duas pessoas que fazem um trabalham no acabamento, uma pessoa que entrega, outra que limpa a argila, temos outra além do meu pai que também modela as peças, então a partir do momento que houve uma demanda, a gente com certeza incorpora para dentro da equipe”, enfatiza a empreendedora.
Um fato interessante do empreendimento da família Sant’ana é de entender o público como parte do processo empreendedor. Criando um espaço aberto, seguro e inclusivo para pessoas negras, LGBTQIA+, de povos originários e outras minorias sociais, o negócio beneficia a população belenense trazendo estas populações para mais próximo da cultura amazônida, aproximando-os da ancestralidade, da arte e de conhecimentos sobre o empreendedorismo e a valorização da Região Norte como um lugar de futuro promissor para novos negócios e formas de trabalho.
“A gente entendeu que precisava fazer um processo educativo com o nosso público. Porque assim, a tradição aqui na região ela é desvalorizada então a gente compreendeu que pra colocar os preços num valor justo de produção, que a gente conseguisse pagar todo mundo bem pago, a gente teria que aumentar o valor, e aí quando você aumenta o valor você precisa fazer com que o seu público compreenda o porquê que o seu valor é diferente de todo o teu entorno”, explica Maynara.
E foi a partir deste entendimento que a Cerâmica Família Sant’ana deu início a um novo serviço, a realização de oficinas de produção de cerâmica. A atividade, realizada dentro da Olaria da família, tem sido muito bem recebida pelo público, que compartilha orgulhoso os resultados nas redes sociais e permite uma conexão ainda maior das pessoas com a sua ancestralidade. Esse processo de reconhecimento do passado estimula também um maior respeito ao meio-ambiente e uma relação de pertencimento entre os moradores e seu território.
“Quando a gente tem um negócio local com valores muito bem estabelecidos dentro de uma lógica de ancestralidade, dentro de uma lógica de afeto, dentro de uma lógica aqui na região, por exemplo, a gente tem uma conexão muito forte com a terra, com o modo de vida, com o modo alimentar, isso faz muito sentido aqui. E isso conecta para além do negócio. Isso conecta realmente com um bem viver, que é esse conceito mais amplo de que a gente pode viver bem dentro da terra. Então eu acho que os pequenos negócios são fundamentais. A lógica do bem viver, da economia circular, é revolucionária no sentido de trazer valores humanos, que são nossos, mas que estão desarticulados porque existe um interesse do capital por trás. Quando a gente se propõe em ser pequeno, como é o caso da cerâmica, as pessoas sempre perguntam se queremos expor em lojas de departamento, expor em estados do eixo sul e sudeste, parte da nossa vaidade diz que seria legal. Mas outra parte pensa que seremos só mais um. E não é o que queremos. O que desejamos é ser referência dentro do nosso território, poder fazer a diferença e impactar as pessoas com quem temos contato, de fato, e aí expandir de forma muito consciente e de forma responsável com todos os nossos passos e o que vamos estar dizendo ao mundo. Não é só negócio, não é só dinheiro, nunca vai ser sobre isso”, reforça Maynara.
A COP-30 e os pequenos negócios do Pará
A Amazônia sediará a 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP-30), em novembro de 2025, em Belém do Pará, Região Norte do Brasil. Segundo o Presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, como a floresta amazônica era o principal tema de debate nas conferências das quais participou, em Paris e Copenhague, além do Egito, ele decidiu sugerir que a COP fosse realizada na região, para que as pessoas pudessem conhecer a floresta e suas riquezas.
“Se todos falavam da Amazônia, por que, então, não fazer a COP num estado da Amazônia, para que eles conheçam o que é? O que são os rios, as florestas, a fauna. O pessoal se prepare porque vai ter gente do mundo inteiro e vão ficar maravilhados com a cidade de Belém”, afirmou Lula.
“A escolha de uma cidade na Amazônia como sede para a COP-30 não é apenas simbólica. Ela reflete o reconhecimento global da importância dessa região para o equilíbrio ecológico do planeta”, é o que afirma Rubens Magno, Superintendente do Sebrae no Pará.
“Desde o começo do ano o governo do Pará realiza um grande programa de qualificação de mão de obra, o Capacita COP-30, que oferta cursos nas áreas de turismo, infraestrutura, produção de alimentos e segurança do trabalho. São 67 cursos diferentes, pensados em atender a demanda da COP-30 mas que certamente elevarão a mão de obra do nosso estado a um novo patamar, permitindo que a pessoa qualificada conquiste uma vaga existente no mercado ou decida empreender para ser seu próprio patrão”, afirma Hana.
Para a COP-30, são esperadas cerca de 50 mil pessoas. Toda essa movimentação trará ao estado não apenas um impacto a partir das várias obras em execução ou que ainda terão início, mas também no mercado local que será impulsionado com o grande fluxo de pessoas gerados. E é com o objetivo de preparar os empreendedores da Região para que estejam prontos para a COP-30 e que a partir dela sigam fortalecidos em seus negócios que o Sebrae tem atuado junto ao Governo do Estado.
A Região Norte respira e vivencia o empreendedorismo. Segundo um Mapa do Empreendedorismo, contido dentro do Atlas dos Pequenos Negócios, o Norte possui uma das maiores concentrações de empreendedores jovens. Em Roraima, a parcela de jovens envolvidos nos pequenos negócios é de 40%, mas este número se amplia grandemente nos estados do Amazonas e do Acre, onde esta porcentagem alcança a marca de 84%. No Pará, de acordo com dados levantados pela Junta Comercial do Estado do Pará (Jucepa), entre 2018 e 2023 foram registradas mais de 179 mil empresas em atividade que contam com a liderança feminina.
Pessoas LGBTI são outros exemplos de como o empreendedorismo é uma alternativa para a segurança financeira. Muitos deles, que acabam saindo do mercado formal por conta da intolerância e preconceito, encontram nos pequenos negócios uma alternativa para a própria subsistência e investem em novas criações. Estes novos perfis no empreendedorismo escancaram uma realidade que não pode ser ignorada: discutir o futuro do planeta, falar sobre justiça climática e refletir sobre o desenvolvimento sustentável também envolve entender as populações que existem e resistem nestes territórios que coexistem com as transformações ambientais advindas com a ebulição global.
“Creio que um grande ponto de virada tem sido as políticas públicas, como os editais que começaram de forma emergencial e agora se estabilizam como leis anuais. Pensar a produção artística setorizada, a partir da construção de projetos, projeta em nossa própria mente um sentido mais profissional. Pensar arte no campo educacional seria fundamental. Nossa região é cheia de cultura pulsante, que vai da música às cerâmicas, literatura, a conotação oral… Afinal, nós somos movidos por arte. Trazer isso para a educação formal pode ser uma forma de alicerçar a potência artística da cidade e região, através de projetos e pesquisas sobre o passado e o presente”, enfatiza a artista Rawi.
Ela frisa também que: “pequenos negócios também são sonhos em forma. Contribuem com empregos diretos e indiretos e geram renda. Esses empreendimentos têm a capacidade de transformar realidades das mais variadas maneiras e, justamente esse fator de transformação, é talvez o elemento mais importante dessa soma”, diz.
“Tem uma coisa absolutamente fantástica dos pequenos negócios que é a possibilidade de transformação social. Toda vez que alguém compra um produto ou contrata um serviço de um fornecedor local o dinheiro fica na comunidade, e ele alimenta outros negócios. Então isso gera prosperidade para a população e desenvolvimento para o estado. É por isso que os pequenos negócios são tão importantes: eles trazem benefícios para toda a comunidade, que cresce junto com o empreendedor conforme a renda é distribuída. Cada empreendedor também é um comprador, e esse dinheiro que passa de mão em mão pela comunidade traz benefícios para todos”, finaliza a Vice-governadora do Estado do Pará.