Portal Jambu

Da Redação | Foto: Divulgação

De Icoaraci para o mundo, Nic Dias é uma rapper e DJ paraense que vem ganhando notoriedade nos últimos anos por seus versos fortes. Sua história de luta contra as dificuldades sociais que enfrenta/enfrentou é pano de fundo para suas músicas. Nic, que atualmente tem 24 anos, começou a cantar rap em 2017 e atualmente é um dos maiores e mais promissores nomes da cena paraense, tendo se apresentado em festivais como o Rock In Rio, em 2022, e no Afropunk, no mesmo ano.

Em 2023, a artista trouxe ao mundo seu primeiro álbum de estúdio, nomeado “Bad Bitch (Relikia)”, com um total de dez faixas. Dividido em três atos distintos: “Água”, “Vila” e “Festa”, cada um dos atos representa uma fase ou algo importante para a rapper. Em “Água”, o destaque vai para a religiosidade da artista, que é filha de Oxum, e para a sua vida familiar. Já em “Vila”, as origens de Nic são ressaltadas. Essa é uma questão primordial para a rapper, que é natural de Icoaraci. O último ato, “Festa”, chega com a celebração, quebrando a narrativa normalizada acerca das histórias de mulheres negras, onde as situações são sempre sofridas, dolorosas. Encerrando o álbum, Nic chega para celebrar a vida, os traços, os cabelos e outras questões afroculturais.

Confira abaixo a entrevista que a rapper concedeu ao Portal Jambu:

Portal Jambu: Como o Bad Bitch (Relikia) foi construído? Quais foram as suas principais inspirações para compor as músicas que integram a tracklist do álbum? 

Nic: O álbum foi pensado e construído a partir de uma narrativa criada dessa persona que é a “Bad Bitch”. Se perceberem bem, desde a primeira faixa até a última, juntando o material audiovisual que ainda está saindo, dá para compreender que o álbum foi dividido em três atos: o primeiro, que vai da primeira à quarta música, se chama água, e esse ato é referente a minha questão ancestral, fala mais sobre família, raízes, espiritualidade, porque eu sou filha de Oxum, eu sou afroreligiosa, do Candomblé. E justamente o processo de criação do álbum se deu nessa ordem cronológica da minha feitura de santo até o final, que é o último ato.

Passando o primeiro ato, se a gente for imaginar as músicas em cores, podemos imaginar cores como branco, dourado… algo assim mais clean né? E aí quando a gente passa pro segundo ato, que é a “Vila”, ele retrata o lugar de onde eu sou, Icoaraci. Então é uma narrativa de uma personagem, de alguém que renasceu espiritualmente e retornou pro lugar de origem, que é Icoaraci. E eu faço questão de demarcar dentro do álbum esse território, porque eu acho extremamente importante que a gente demarque o lugar de onde a gente veio, pra onde a gente quer ir e pra onde a gente não quer mais voltar. Acho que é muito importante a gente sempre demarcar esses pontos. E o audiovisual do álbum, que está sendo publicado aos poucos no meu canal do youtube, foi gravado tudo em Icoaraci. Então pra mim é um ponto muito importante, centralizar as coisas sabe?

O terceiro ato se chama “Festa”. Esse último ato é referente a uma celebração, porque a gente sempre imagina a narrativa de pessoas, de mulheres negras, sempre como algo muito sofrido, algo muito doloroso. As últimas faixas do álbum, elas são referentes a questões de comemoração mesmo, sabe? De celebração das nossas vidas, de quem somos, dos nossos cabelos, dos nossos traços, dos rôles que nós gostamos de dar… enfim, ele fala mais sobre essa parte da noite que eu gosto mais, então se a gente pensar o álbum como um dia, ele começaria às 5h da manhã e terminaria meia-noite. O primeiro ato de manhã, o segundo ato à tarde e o último à noite, e no audiovisual conseguimos refletir um pouco disso.

Esse álbum vem sendo construído desde 2021, só que eu tive alguns percalços durante o caminho por ser uma artista independente, então não é fácil, são muitas coisas que eu tenho que administrar, e o álbum conta essa história.

Portal Jambu: Qual é essa linha que amarra todas as músicas juntas, construindo os atos e transformando-os no “Bad Bitch”?

Nic: Eu penso que o elo que une todos os atos é a própria “Bad Bitch”, a persona que se tornou a “Bad Bitch”, mas não é só isso. Tipo, se eu fosse falar de mim, eu também não me resumo só a esse álbum, eu tive meu primeiro trabalho que foi o “1.9.9.9” que também conta uma narrativa. E a própria “Bad Bitch” se tornou essa pessoa, quem ela é agora, também pelas coisas do passado. Foi tudo que aconteceu no ontem e há 500 anos sabe? Então tem esse aparato histórico, tem toda essa reflexão de contexto social. Eu gosto muito de trabalhar nessa linhagem de pensamento crítico, mas divertido  também. Eu tentei trazer essas duas questões para o álbum. 

Nic Dias tem 2 álbuns lançados, “Bad Bitch” (2023) e “1.9.9.9” (2021) – Foto: Divulgação

Portal Jambu: Tanto o álbum quanto as faixas têm complementos entre parênteses? Por que, de todas as músicas do álbum, “Relikia de Icoaracity” é a que não segue esse padrão?

Nic: Por eu ser uma artista independente desde o ano passado, eu passei a administrar totalmente as minhas coisas. E me sinto completamente livre para fazer o que eu quiser, então isso me dá um poder de criatividade muito maior. O que me fez chegar neste pensamento […] esses parênteses são referentes a trechos marcantes das músicas para mim, eles meio que são um spoilerzinho do que tem dentro da faixa. “Relikia de Icoaracity” é a única faixa que não tem parênteses, porque ela é um interlúdio, ela é a sexta música, que conecta um ato ao outro. Se você reparar, ela não é uma música que segue o padrão verso-refrão-versão, ela é só uma linha reta, como se fosse um papo reto.

Portal Jambu: Do EP “1.9.9.9” para o “Bad Bitch”, o que mudou em termos de sonoridade e letra? 

Nic: Em questões de sonoridade, de “1.9.9.9” pro “Bad Bitch”, eu acho que teve uma mudança bem perceptível no sentido de: no meu primeiro ep são só 4 tracks. E o álbum já vem com 10 músicas, muita coisa. Foi um processo que demorou muito, um processo trabalhoso, mas assim, se eu olhar pra trás consigo pensar que consegui criar dentro de “Bad Bicth” exatamente a atmosfera que eu queria. Se tu fores ouvir de fone, vais perceber barulhos, que a gente chama de sonoplastia, que são referentes à água. De “Silva” pra “Erros”, que é a primeira e a segunda faixa do álbum, Silva é a faixa-título que é o sobrenome da minha família materna, por isso que eu achei que ela deveria ser o abre-caminhos do meu álbum. Na mudança de uma faixa para a outra, eu propositalmente quis que fosse adicionado um som de água, para fazer referência a água doce, aos rios da Amazônia e à minha espiritualidade por ser filha de Oxum, então eu percebi como eu amadureci enquanto artista na própria construção do meu trabalho sabe? E por eu administrar, atualmente, 100% as minhas criações e as minhas coisas, isso me trouxe uma liberdade muito grande para fazer, como eu disse, o que eu achasse legal, interessante, e claro com a colaboração de outros artistas, porque eu acho isso extremamente importante, que a gente não construa nada só, que a gente compartilhe as coisas que estamos criando.

Sucesso no Rap Paraense, Nic é uma das mais promissoras cantoras da atualidade no Pará – Foto: Divulgação

Portal Jambu: Quando começou o seu trabalho como rapper? O que te levou a trabalhar com a música e com o rap em si? Você passou por outros gêneros musicais antes de entrar pro mundo do rap, trap e hip-hop ou já seguiste logo nesse meio?

Nic: Eu entrei na música não necessariamente através do rap, porque eu sempre fui muito curiosa, muito inquieta. Eu, quando era mais nova, pré-adolescente, ficava numa liga de querer fazer várias coisas ao mesmo tempo e eu sou geminiana, e aí eu era uma adolescente muito agitada. Pra música, eu ficava ‘como será que é isso, aquilo?’ e aí eu fui aprendendo a tocar violão, guitarra, baixo, vários instrumentos.

O rap sempre esteve presente na minha vida por uma questão social do contexto de onde eu estava inserida, que é ser de um bairro marginalizado, periférico e tal, e a minha família sempre ouvia Racionais e coisas do tipo. E aí eu lembro que eu ouvia muito rock psicodélico quando eu era mais nova, tipo Pink Floyd e essas coisas assim, o que me levou a ter um pensamento mais crítico. Por exemplo, a banda aborda coisas como o fascismo e eu tinha o quê? 15 anos? Tem uma música deles que se chama “Another Brick in the Wall”, e eu falei ‘que muro é esse que eles estavam falando?’ E eu parava pra pensar, e isso me levou a outras questões que foram questões de raça, foi quando eu cheguei a Bell Hooks, foi quando eu cheguei a Conceição Evaristo, e outras autoras que me fizeram desde muito nova ter esse pensamento mais consciente, racialmente falando, sobre mim.

Quando eu adentrei o mundo do rap, eu tinha 17 anos, então eu tinha uma ideia mais consistente sobre o meu corpo naquele espaço, que antigamente era muito masculinizado, muito normativo, enfim, essas coisas todas. E as coisas, não a partir de mim, mas a partir também da luta de outras mulheres que vieram antes de mim no hip-hop, essas paradas foram mudando. É tanto que hoje existem várias batalhas de mulheres, de pessoas trans, as coisas estão mudando e eu fico muito feliz com isso. A música começou de um jeito, mas eu comecei a gostar muito de escrever, quis ser escritora uma época e com essa escrita veio a poesia, da poesia veio slam e do slam veio o rap. Eu falei ‘pô, se eu posso fazer uma poesia, eu também posso fazer um rap’, que é tipo ritmo e poesia sabe? Então é isso, eu peguei, meti a cara e comecei a fazer, primeiramente me apresentando em batalhas e depois as coisas foram ganhando mais corpo.

Portal Jambu: O que você espera dos próximos anos da sua carreira? Já cantaste no Rock In Rio, foste abençoada pelo Djonga em um show aqui em Belém, estiveste em eventos noutros estados do Brasil. Tem alguma coisa que ainda queres fazer, uma meta que queres atingir nos próximos anos?

Nic: Eu costumo falar assim: eu me surpreendo com as coisas que acontecem na vida, porque eu tento não criar expectativa, só que isso não significa que eu não crie minhas metas e meus objetivos, claro. Eu penso que quando eu crio muita expectativa, até sobre mim mesma, e aí eu sou humana né? Posso acabar não conseguindo atingir essa expectativa, aí eu me frustro e fico mal. Então eu tenho tentado praticar essa questão da organização dos passos que eu quero dar, respeitando muito a minha questão espiritual. Eu sempre busco ter muito discernimento sobre os caminhos que eu vou seguir.

Falando de projeções futuras, eu penso… para além da região… penso estar para além talvez do Brasil sabe? Penso assim numa projeção em que meu trabalho possa ser ouvido em qualquer lugar do mundo, seja como DJ, seja como MC, seja como rapper, seja como produtora. Eu penso em expandir meu trabalho de diversas formas, porque como eu acho que faço várias coisas, isso me dá muitos caminhos. Porque eu acho que a gente tem que ter fé, né, no caminho que a gente vai seguir sabe? Além de tudo. Por mais que seja incerto, é buscar nessa incerteza uma certeza de que vai dar certo e é isso aí. É por isso que penso que daqui alguns anos, talvez eu já não esteja aqui, esteja por aí (risos). Onde? não sei, mas esteja por aí fazendo música que é o que eu gosto de fazer.

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